“Everybody comes to Hollywood
They wanna make it in the neighbourhood
They like the smell of it in
Hollywood
How could it hurt you when it looks so good?”
‘Hollywood’, Madonna
Do respeitável público a puta que o pariu
Qual seria o espaço do espectador? Este ser individual ou coletivo que reunido numa situação específica tende a esperar e receber, mesmo que de maneira ativa em seus processos mentais ou sensoriais, o fluxo direcionado de certas informações, situações, imagens. Imagens aprisionadas, espectador aprisionado. Ao menos no cinema, em seu espaço (agora rigorosamente físico) a graciosa ironia de que as imagens ou o mundo uma vez aprisionado pela câmera, pelo enquadramento irão ser libertados durante a sua recepção, assim como seus espectadores, presos em suas poltronas até que o fim do filme os livre das amarras de sua narrativa.
Na Teoria da Gestalt há o chamamos de Clausura, ou fechamento visual, que basicamente incide sobre a delimitação de uma forma, uma visão, como se completássemos por uma extensão lógica todo o entorno deste objeto visto. Seria quase como o efeito-fi do cinema, como se a Clausura trata-se de um processo mental que falsearia a ilusão de um movimento ao unir suas fragmentações iludindo o cérebro a respeito desta movimentação real quando objetivamente o que existe é uma série de imagens postas em seqüência.
‘Rubber’, de Quentin Dupieux, numa sinopse rasteira, própria da contracapa de um antigo vídeo, é apenas a história de um pneu assassino. Demasiado simples assim, como ele propositalmente faz questão de ser ou parecer. Porém, não é necessário um olhar muito diferenciado para perceber as sutilezas às vezes até mesmo poucos sutis, mas especialmente irônicas e certeiras sobre sua verdadeira mensagem.
Antes ou depois de falar sobre Robert, nosso protagonista e assim como todos os protagonistas de ontem e de amanhã, precisaremos falar um pouco mais ainda sobre o espectador. Porque se o pneu inanimado avança das profundezas do deserto enquanto mero objeto da (direção de) arte (num filme todo objeto se torna) para o próprio foco de vida e ação, ele o faz porque é visto.
O antigo pressuposto da visão que determina a existência, algo só existe se eu o vejo. Ao contrário do penso, logo existo; o vejo, logo existe. As crianças desde cedo se utilizam desse pensamento nas inúmeras brincadeiras de esconde-esconde da mesma forma que a câmera excitada pela denotação quer ver, dar os olhos (e a curiosidade, importantíssimo) do espectador a ela, troca fetichista por ver e conhecer tudo. Tudo existe, portanto, tudo é possível, tudo é real.
Hugo Münsterberg, pensador que trabalhou seus conhecimentos na psicologia industrial dentro da administração científica também atuou dentro da teoria da recepção, área que procura analisar fatores artísticos e culturais a partir da figura do receptor. Münsterberg foi um dos primeiros a perceber como os filmes possuem a capacidade de produzir eventos mentais que não residem apenas na película ou sua matéria original ou exibidora, mas na mente dos espectadores. Para ele quando assistimos a um filme três elementos são acionados em nossa percepção: a atenção, a memória e a imaginação e por último a emoção.
O filme de Dupieux abraça todos esses conceitos de espectatorialidade para logo em seguida dinamitar como um homem(diretor)-bomba todos eles a favor de sua criativa e distanciada visão sobre o cinema e aqueles submetidos a ele. Uma alteridade cinematográfica na qual a interação social não se dá apenas de indivíduo para indivíduo, mas de filme para espectador.
Em ‘Rubber’, como em todo filme e nos esquecemos disso, tudo é uma questão de escolha, favorecimento, distração, foco narrativo. Dessa forma o condicionamento animalesco dos acontecimentos segue uma linha de raciocínio por vezes bastante subjetiva que faz direcionar uma informação seja ela narrativa, descritiva ou reflexiva por um lado ou por infinitos outros. Como um Fuller ou um Godard existem aqueles que aceleram ou desaceleram a narrativa, respectivamente. Há também aqueles que contam demais (ou os que fingem contar).
‘Rubber’ incide sobre a metalinguagem de maneira discreta ou tratar explicitamente da das relações de formação e difusão de uma imagem no imaginário de um coletivo. Um filme ‘senhores e senhores, atenção’, ingenuamente nocivo para um público nocivamente ingênuo. Mais do que troca de palavras, troca de venenos e enganos. Os espectadores sempre querem ou pensam que sabem demais ao filme que da mesma forma sempre pensa estar a frente e acima de seus receptores confortavelmente posicionados.
Logo no começo um automóvel irá pôr literalmente abaixo uma série de cadeiras (ou poltronas) que deduziríamos logo mais a servir de local favorecido para um público em busca de conforto e satisfação. Nesta seqüência inicial já podemos ter idéia da graça e perversão de seu realizador que, com leve sarcasmo, mostra como não pretende fazer concessões tranqüilas para contar a sua história.
Esta primeira cena é importante porque logo de imediato revela seu modelo de operação sobre a narrativa, sempre alternando um distanciamento auto-referencial com senso realista e crível de mundo e de suas ações. É essa alternância entre uma teatralidade cinematográfica dos meios e artifícios da representação com a crença já mencionada de que tudo o que vemos existe, portanto é real e assim abertamente aceito. A presença do suspension of disbelief acionada em toda a história do cinema. O que foge a isso foge ao filme, à sala de cinema, ou seja, não existe, ou pior, não importa.
No decorrer da seqüência um policial (Stephen Spinella), ou à moda americana um xerife, sai de sua viatura e caminha com um copo de água posicionando-se frontalmente à câmera. A agressividade formal da quebra da quarta parede que atualmente nos confronta muito menos, ainda mais acontecendo no início e não de surpresa, no meio de um filme, é ao mesmo tempo a primeira fala proferida como uma espécie de prólogo de apresentação. Lieutenant Chad então começará seu pequeno discurso citando uma série de filmes diferentes entre si que se assemelham devido a um único elemento: o da razão alguma.
Ele nos pergunta de maneira direta e objetiva o porquê de, por exemplo, em ‘E.T.’, de Steven Spielberg, o pequeno extraterrestre é da cor marrom. A resposta? Por razão alguma. Ou por que em ‘Uma História de Amor’, de Arthur Hiller, os protagonistas se apaixonam perdidamente? Ou ainda em ‘JKF’, de Oliver Stone, o presidente é assassinado de repente por um desconhecido? Em ‘O Massacre da Serra Elétrica’, de Tobe Hooper, por que nunca vemos os personagens indo ao banheiro ou lavando suas mãos como fazemos na vida real? E ainda por que em ‘O Pianista’, de Roman Polanski o protagonista precisa se esconder e viver miseravelmente tocando piano tão bem? Guardando a diferenças entre as possíveis respostas, algumas ou menos justificáveis (e aí está mais uma piada escondida), a resposta dada pelo personagem é sempre ‘razão alguma’. Para ele todos os filmes possuem em algum dado momento a presença deste elemento de ‘razão alguma’. Por que? Porque a própria vida estaria cheia de ‘nenhuma razão’.
Ao final desta conclusão ao mesmo tempo simplista e profunda, mas sempre diabólica, o protagonista é interrompido por outro personagem que o chama para ir embora já que não haveria necessidade de perder tempo explicar esta porcaria. O complexo é meramente simples e vice versa, entende quem quiser ou tiver interesse, do contrário, haverá um outro entendimento, satisfatório ou raso na medida particular de cada público.
Sua fala de encerramento informa que o filme que verão hoje é uma homenagem a ‘nenhuma razão’, o mais poderoso elemento de estilo. Após o corte nos damos conta que o xerife não falava apenas com e para nós, espectadores de ‘Rubber’, mas também a outros personagens, outros espectadores de ‘Rubber’. O curioso do artifício proposto por Dupieux é de que ambos estamos assistindo ao mesmo filme, ambos estamos dentro dele, apesar de estarmos de maneiras diferentes. Novamente a pergunta inicial, qual o espaço do espectador? Longe de ‘nenhuma razão’, esta resposta virá cedo (e tarde) demais para alguns que assistem.
Esses espectadores personagens desprovidos de cadeiras para assistirem ao filme anunciado terão apenas binóculos entregue por um homem (Jack Plotnick) creditado como uma espécie de contador ou contabilista. Não há tela para se ver, apenas o mundo a frente (ou ao lado, em todas as direções). Um filme que é também a própria vida, desejo poético e idílico de muitos cineastas metafísicos aqui trazido a um sentido palpável e concreto.
Se o filme acontece agora, ao vivo (live em inglês cujo sentido é ainda mais pertinente), basta apenas olhar e ele passará a existir. E como mágica (ilusão) ou engenhosidade técnica o filme passa a acontece, simultaneamente ‘Rubber’ para nós que partiremos propriamente a sua narrativa e ações bem com o ‘filme’ que os personagens com seus binóculos passarão a ver in loco.
Colorido ou preto e branco, contemplativo ou entediante, os questionamentos naturais dos espectadores estão todos ali. Se um garoto questiona a ausência de som (ou de uma sonoridade extra diegética) é porque ele não pensou ainda que esteja literalmente dentro do filme que está assistindo o próprio som do vento, diegético a ele e naturalmente ao filme, é o som unânime que os relaciona, como o personagem de seu pai irá indicar. Assim com o som, a imagem é uma só, dentro e fora se perdem quando a fronteira entre real e ficção é invisível.
Sem fronteiras ou separações a possibilidade infinita se instaura e a narrativa começa. Narrativa do possível e do impossível. Chegamos finalmente a Robert quando todos os olhares estão sobre ele. O grito de ação do diretor ao filmar uma cena nunca foi tão bem representado. Robert, o pneu, ganha vida e se levanta simplesmente.
Na prosopopéia de ‘Rubber’ o nosso protagonista pneu parece nascer e dar seus primeiros passos ou rolagens como um bebê experimentado seus primeiros deslocamentos espaciais e em pouco tempo já estamos incrivelmente familiarizados com sua presença e inicial ternura. Até que Robert encontra um outro objeto ou ser ‘vivo’.
Ao tocar uma garrafa plástica ele a percebe maleável ao seu corpo e decide avançar sobre ela. Em seguida o jovem pneu se depara com um escorpião que também é atropelado pela sua soberania de potência. O primeiro conflito de Robert e seu rápido ponto de virada numa estrutura clássica de roteiro em três atos digna do cinema clássico narrativo é quando ele posteriormente se vê diante de uma garrafa de vidro resiste a sua força física. Como se vê incapaz de destruí-la passando sucessivas vezes por sua estrutura ele pára e parece pensar a respeito.
De repente sem qualquer razão, mas estranhamente bastante lógico a partir de um ponto de vista justificavelmente inexplicável, ele começa a tremer como se estivesses prestes a explodir, exaltando internamente uma força sobrenatural. E a garrafa se quebra sem qualquer contato físico, direto, como se tivesse sofrido uma explosão interna.
Para nós e para os espectadores do ‘filme’ dentro do filme o que parecia inicialmente um início conceitual demais para um público digno de sua cadeira de público ‘Rubber’ traz para satisfação geral uma atitude banal e violenta ao gosto direto dos que querem ação sem grandes explicações e porquês.
A situação imposta e já reconhecida, comentada ou compreendida por todos, irá como já era esperado passar por um crescimento em suas atitudes e conseqüências transformando a capacidade telepática destruidora do pneu no plot principal de um longa metragem. Robert após suas primeiras destruições gratuitas e inocentes irá continuar a se aventurar pela paisagem e criando gosto pela coisa acabará inevitavelmente encontrando outros objetos e seres diferentes, um coelho, um pássaro, seres humanos.
O primeiro que ele irá encontrar, não por acaso, é aquela que correspondentemente a ele seria a star ou a mocinha Sheila (Roxane Mesquida). Apaixonado ou apenas fascinado pela nova presença em seu cenário habitual o pneu irá persegui-la como um King Kong perseguia sua Ann Darrow.
Como de imediato ele não consegue acompanha-la em sua trajetória ele irá se contentar com outras figuras ou figurações que estiverem dispostas em seu caminho utilizando-se da mesma estratégia já conhecida e sanguinariamente esperada, a de saciar o olhar de quem vê por um pouco de violência e diversão. Robert assim se torna efetivamente um pneu assassino como a glória de tantos outros personagens do universo pop cultural norte americano explodindo cabeças e seres humanos por onde passa.
Porém o filme interno não possui edição ou elipses e o público é convidado a continuar em seu vício declarado de participação e acompanhamento ininterrupto. A atenção completa e sem descanso não respeita o sono ou mesmo a fome de quem assiste. Público personagem castigado por Dupieux, motivados pela curiosidade voyeuristica de tudo saberem e quererem, cada vez mais, em maior intensidade, ver e saber muito, mesmo que mal ou sob condições absurdas. Se hoje sabemos que o lucro das grandes redes de cinema são em cima das pipocas e todos os combos de alimentação do que com as bilheterias é porque o espectador vê muito mais com o estômago do que com os olhos, como já sabia Carlo Ponti ao conversar com Godard na época de ‘O Desprezo’ (Le Mépris).
Assim chegam aos espectadores um peru envenenado que será devorado como que por animais insaciáveis o material a eles oferecido. Comparativamente às imagens que sempre nos são apresentadas, nada muito diferente da indigestão ou morte que certos filmes podem provocar a longo prazo num público estimulado porcamente.
Os personagens começam logicamente a passar mal gravemente enquanto até chegam a se indignar a respeito da maneira como são tratados enquanto público e definhando até a morte buscam numa última socialização enferma a saída para uma inevitável morte.
Paralelamente a isso o pneu ainda avança com vida e teoricamente o filme ainda acontece, ambos os filmes, o que continuamos acompanhando, aquele que a audiência sem vida acompanhava. Enquanto isso novas mortes acontecem motivadas por nenhum motivo e a polícia passa a investigar chegando a um típico motel a beira do deserto onde há o corpo de uma camareira.
Enquanto os policiais recolhem o corpo destroçado e começam a averiguar o caso o xerife julgado que todos os espectadores estejam mortos a essa altura passa a desconstruir mais uma vez a representação daquilo que é visto, pondo em cheque a outros personagens inseridos na narrativa e, mais ainda, no senso de mundo real, a veracidade ou no caso a falsidade, simulação ou teatralidade daquilo que está acontecendo.
Dirigindo-se aos outros policiais como se estes fossem atores interpretando um papel ele afirma que tudo está terminado e que podem se quiserem voltar para suas casas. Seus interlocutores sem nada entender continuam agindo naturalmente (apesar de serem no fundo, logicamente, atores de um filme), reforçando mais uma vez o jogo entre a verdade de tudo aquilo que é visto na tela e o distanciamento brechtiano do ‘filme’ dentro do filme.
A brincadeira e a tensão dessas suas possibilidades de compreensão narrativa atingem níveis absurdos quando, por exemplo, o xerife pede para um dos policiais atirar contra seu corpo afirmando que nada o aconteceria. O tiro acontece, ele sangra realisticamente, mas continua de pé. Até mesmo o corpo da vítima envolto no plástico preto é posto superficialmente a prova como sendo parte de uma encenação, mesmo que os policiais continuem sem entender a atitude ilógica e descabida do xerife. Tudo isso até que o contador que entregou os binóculos e depois o peru envenenado aos espectadores afirma a ele que um deles não comeu o alimento e assim continua vivo e assistindo a tudo. O xerife pára, pensa. É preciso continuar, the show must go on.
Então a fabulação treme e o personagem volta a encenar aquilo que todos já continuavam ao mesmo tempo encenando e vivendo. Novamente questão de olhar e posicionamento, tudo se torna possível a partir do momento em que vemos essa possibilidade viva na tela. O frame que separa uma mudança de expressão de olhar, uma nova atitude de corpo e fala, basta um piscar de olhos para perdermos o movimento imperceptível de uma variação. Como na velha brincadeira do vivo ou morto, de tanto abaixarmos e levantarmos sucessivamente, quando a mecânica é trocada abruptamente não há tempo para pensar, apenas giramos em falso em nossa própria ingenuidade habitual.
Daí para frente ‘Rubber’ continua sua narrativa fazendo-se se valer dela ao máximo, unindo personagens e espectadores, internos e externos, numa só aventura que apesar de não possuir sentido algum possui o sentido da própria indústria cinematográfica. Seguindo a lógica de sua própria natureza industrial como fenômeno e vitalidade o filme não termina quando aparentemente parecia ou deveria terminar. O assassino como de praxe não morre definitivamente, mas como alerta o próprio personagem espectador parece ter se reencarnado sob outra forma.
A nova forma ironicamente é uma velha fórmula. Munido por uma legião de novas formas ou novos pneus o destino agora é outro, a ironia é trágica se não fosse tão cômica e bem estruturada. O pós-final proposto é justamente um apocalipse destruidor de sua própria criadora ou uma espécie de suicídio maternal irrealizável.
Se ‘Rubber’ tivesse uma continuação ela seria impossível porque impossível seria o conteúdo do seu ‘to be continued’. O filme acaba no exato momento em que o cinema deveria terminar para então quem sabe efetivamente recomeçar.
MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com
Fotos: Divulgação