Os Sapatinhos Vermelhos

“je danse, donc je suis.
tu danses et je te suis.
mais si je te suis,
ce nést pas pour ce que tu penses,
c’est pour la danse,
pas pour la vie.
c’est pour la danse,
pas pour la vie.
c’est pour la danse,
pas pour la vie.”
‘Je danse Donc Je Suis’, Brigitte Bardot

Plié, pule (e sangre)


Este ano grande parte do público voltou seus olhos para os pequenos pés de vida própria através do retorno do tema ballet aos cinemas. Sim, os pés, uma das mais importantes porções do nosso corpo, de sua essencial função motora ao misterioso aspecto fetichista por ele despertado. Salvo Bresson (também e principalmente um cineasta das mãos), é raro no cinema encontrar aqueles que conseguem abaixar a câmera e simplesmente observar aquilo que está mais abaixo, escondido entre tecidos ou invisível pela naturalidade ou banalidade do mero caminhar, ação esperada e óbvia de todo corpo que se move no espaço e na tela.

E é por aí que podemos chegar a clara conclusão do afastamento dos pés aos olhos do espectador já que a região inferior é inadvertidamente esquecida pela série de enquadramentos disponíveis na linguagem cinematográfica. A eles somente um primeiríssimo plano serve de consolo e atenção, mas a quem (ou a o que) o close não serve? Esta medida de quadro, o plano que corresponde dentro da cinematografia ao tipo sanguíneo O, ou seja, aquele que pode servir ou ‘se doar’ para não perder o trocadilho a qualquer imagem resolve a problemática dos pés tão negligenciados pelo feitiço e poder de um rosto ou mesmo da totalidade paisagística de um plano aberto.

Para que possa receber a atenção da objetiva, os pés precisam ao menos em teoria de uma necessidade para aparecem já que não possuem reações dramáticas destacáveis como as funções orais da boca através da fala ou do olhar pelos olhos na expressão de emoções e estados de alma. Dessa forma, para impelirem a câmera ou eles precisam da específica meticulosidade do diretor francês já citado, tão particular a ponto de escapar a qualquer regra ou categoria ou então necessitam de adornos e atitudes e posturas chamativas (um curioso exemplo atual é o trailer de ‘Les Bien-Aimés’, de Christophe Honoré e seu liberado gracejo aos sapatos).

Se ‘Cisne Negro’, de Darren Aronofsky se tornou a última coqueluche da dança, o responsável pela retomada do interesse a esta prática e pela proliferação de referencias e desdobramentos em vários setores artísticos e comerciais é porque antes dele houve outros filmes. Não apenas os irresistíveis e espasmódicos sapateados de ‘Cantando na Chuva’, de Stanley Donen e Gene Kelly ou também ‘Cinderela em Paris’, do mesmo Donen sem falar dos apoteóticos espetáculos visuais de Busby Berkeley, primordiais nem que a título de curiosidade e conhecimento a qualquer artista da imagem, do som e principalmente da dança. ‘Cisne Negro’ certamente é tudo o que é por causa de outros filmes que puderam revelar um lado normalmente abdicado da dança como ‘Suspiria’, de Argento cintila em segundo plano dentro de seu contexto de horror e fábula e como recentemente o renomado documentarista Frederick Wiseman mostrou em ‘La Danse – Le ballet de L´Opéra de Paris’ com todo o rigor e exercício despendido deste trabalho. Porém antes de todos eles existiu ‘Os Sapatinhos Vermelhos’ ou simplesmente ‘The Red Shoes’. Não é a toa que a famosa seqüência em que Nina (Natalie Portman) dança fazendo rígidos giros em seu próprio eixo numa espécie de spin ou pirueta entrecortada por planos rápidos de luzes é retirada de maneira absolutamente idêntica de ‘Os Sapatinhos Vermelhos’ numa referência que se torna quase uma cópia pela exata reprodução.

Dirigido por Michael Powell (realizador do obrigatório ‘Peeping Tom’) e Emeric Pressburger foi lançado em 1948 e abençoadamente teve sua cópia original restaurada pela fundação cinematográfica de Martin Scorsese em colaboração com a UCLA Film & Television Archive, versão esta exibida no Festival de Cannes de 2009 com extrema aclamação.

O título vem a partir de uma obra homônima de Hans Christian Andersen, famoso escritor dinamarquês de histórias infantis e não por acaso filho de um sapateiro. Neste que talvez seja um de seus livros mais famosos ele conta a trágica história (ainda mais para crianças) de uma menina pobre que um dia consegue ajuda de uma senhora muito velha para ter uma vida melhor.

Um dia ela se depara numa vitrine com um belíssimo par de sapatos vermelhos pelos quais se apaixona. A obsessão da menina pelos sapatos e sua posterior proibição de uso constante pela senhora fazem com que sua utilização se torne de maneira fantástica um vício enfeitiçado, repleto de adoração, magia e dor. Um dia quando ela resolve novamente coloca-los após novas proibições como que por uma espécie de sortilégio os sapatos imediatamente a faz dançar descontrolada e ininterruptamente.

Obcecada pela vontade doentia de sempre tê-los em seus pés o desejo da menina se torna uma terrível e lírica realidade fazendo-a dançar ao invés de caminhar, indo a festas, ruas e até mesmo um velório utilizando os pares dançantes, passando por morros, florestas e montanhas sem parar de dançar por um só segundo a ponto de implorar a ajuda de um homem que pudesse retirá-los de seus pés. Porém nada fazia os pequenos sapatos vermelhos se soltarem dela. Desesperada pelo efeito eterno, inteiramente desgastada e quase desfalecendo de tanto dançar ela então pede para que o homem corte seus pés para que amputada ela possa se livrar de tal fixação dançante.

O filme de Powell e Pressburger se utiliza da história de Andersen como pano de fundo para a tragédia que acomete sua personagem, apesar de diluir e atenuar o violento desfecho, adicionando a construção de um enredo romântico. Haverá ainda espaço para a principal metáfora sobre a exaustão física e mental dos exercícios e seu aprimoramento da técnica, mais até mesmo do que da contemplação poéticas dos gestos e movimentos, tanto é que um personagem em certo momento reforça a importância da regência atenta e controlada ao invés da imersão e do sonho pela beleza observada.

Acompanharemos a história do conceituado diretor de ballet Boris Lermontov (Anton Walbrook), dono de uma renomada companhia famosa por suas concorridas apresentações de dança, principalmente pelo ávido público juvenil. Logo na seqüência inicial diante de um espetáculo conheceremos também Julian Craster (Marius Goring), um jovem estudante, compositor e regente de peças musicais cuja obra havia sido utilizada sem sua permissão em uma apresentação.

Após procurar Lermontov reinventando sua autoria e talento reconhecidos pelo mesmo Craster é convidado a integrar a equipe compondo novas partituras para futuros espetáculos da companhia. Paralelamente a isso numa determinada noite numa festa casual da alta sociedade Lermontov acaba conhecendo Victoria ‘Vicky’ Page (Moira Shearer em seu debut no cinema), sobrinha da anfitriã e desconhecida bailarina com desejo passional pela dança. Um breve diálogo entre eles foi o bastante para que Boris chamasse Vicky para visitar o teatro onde aconteciam os testes e ensaios para que ela pudesse participar de algumas apresentações.

Seguem os rodopios, cenários e música até que um dia a estrela e dançarina principal Boronskaja (Ludmilla Tchérina) abandona os palcos a fim de se casar e assim constituir uma vida a dois distante da dança. Assim já estará a mostra o impossível paralelo entre vida artística e doméstica ou técnica e paixão. Não há espaço para o amor no terreno profissional sendo toda a vida, aquilo para o qual se vive somente possuindo como única razão e destino o fato de dançar.

Com a saída de Boronskaja surge a já esperada ascensão de Vicky pelo seu trabalho reconhecido em outras apresentações como na sempre utilizada ‘O Lado dos Cisnes’, de Tchaikovsky. Assim a companhia segue de Londres primeiro a Paris e depois Monte Carlo onde boa parte do filme se passa onde Lermontov tem a idéia de estrear um espetáculo de balé baseado em ‘The Red Shoes’, de Andersen. Para este ousado projeto ele pede uma esplêndida composição para Craster enquanto fará de Vicky a grande estrela a partir de uma rotina exclusiva de ensaios e dedicação.

The Red Shoes (ballet) 1948 part1: http://www.youtube.com/watch?v=BksDeYMlbMo

A estréia de ‘The Red Shoes’ é um dos momentos mais inspirados do filme devido ao evidente tour de force inerente a realização da seqüência. A apresentação que em muitos filmes certamente estaria editada a durar poucos minutos aqui ganha uma vigorosa duração de aproximadamente 15 minutos usando um corpo de balé de 53 dançarinos, filmada durante 6 semanas, um tempo extremamente considerável para qualquer seqüência de enorme dificuldade. É como se de repente o filme parasse e a narrativa interrompida desse lugar a um fluxo dançante de imagens e sons filmados numa deslumbrante fotografia de Jack Cardiff em technicolor. O interessante dessa seqüência além de sua duração que incrivelmente não é sentida em momento algum é como ela escapa às noções de espacialidade fazendo com que Moira Shearer e todos os outros bailarinos avancem por inúmeros cenários repletos de luzes, adornos e detalhes muito além do que realisticamente haveria enquanto possibilidade de locomoção e espaço cênico.

The Red Shoes (ballet) 1948 part2: http://www.youtube.com/watch?v=3NWn4nn7sL0

É esperado que após a apresentação ‘The Red Shoes’ tenha se tornado um enorme sucesso para Lermontov e sua companhia e consequentemente a Vicky e Craster pelos desempenhos individuais e inerentes à consagração do espetáculo. Em meio a tanto êxtase as dores sentidas apenas poderiam ser as do corpo forçado à concentração da dança ou a criativa na regência e melhoria sonora. Porém outras dores surgem quando o emocional se instaura dramaturgicamente no filme por meio de um esperado triângulo amoroso não declarado entre Boris, Vicky e Julian.

Numa noite de comemoração Lermontov descobre através de outros membros da equipe que Victoria e Craster se ausentam porque estão apaixonados um pelo outro gerando uma dúbia sensação de ciúme, misturada ao sentimento de posse do diretor pela talentosa dançarina. Vicky precisará escolher não apenas Caster a Lermontov, mas Craster a dança. Escolha difícil que passará pela saída e possível retorno do casal a companhia na iminente estréia de ‘The Red Shoes’ na Inglaterra.

Baseando-se livremente na história original ‘Os Sapatinhos Vermelhos’ apresenta uma inspirada e consciente representação do ballet enfeitando sua fascinação naquilo que ele tem de mais encantador e espetacular, porém sem abandonar o traço dramático de seu esforço. O vermelho que dá cor aos amores e a paixão é o mesmo que colore o sangue e a entrega, seja pra vida ou pra morte (literal ou metafórica).

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação