Os Amores Imaginários

“Bang Bang
io sparo a te
Bang Bang
tu spari a me
Bang Bang
e vincerà
Bang Bang
chi al cuore colpirà”
‘Bang Bang’, Dalida

Eros Invisível


Em ‘A Imagem-Tempo’ Gilles Deleuze relembra o estado desastroso dos laços afetivos (e de todos os vínculos, inclusive os sensório motores do próprio cinema em favor da ascensão de situações ópticas e sonoras puras) perguntando-se “o que se tornou o amor para que homens e mulheres saiam dele tão enfermos, agindo e reagindo mal no início e no fim, numa sociedade corrompida?”. A questão do filósofo incide e referencia a constatação de Antonioni a respeito da falência do amor e mesmo do próprio desejo; “estamos doentes de eros”.

Se nos anos sessenta e posteriormente a ele a incomunicabilidade já demonstrava na obra do cineasta italiano a cisão inevitável de relacionamentos que não se constituam plenamente em sua duração, em oposição aos lânguidos planos de tempo morto, hoje a distância não advém apenas pela não possibilidade de permanência e entendimento entre os pares. A crise atual é ainda mais complexa, muito pelo dinamismo das identidades na condição pós-moderna das relações. O impossível se torna a própria concretização mínima dos afetos em cenários mais plurais e ambíguos. A incomunicabilidade deu lugar ao incomunicável.

Talvez a doença amorosa não tenha destruído todas as chances de revitalização dos apaixonados, porém certamente os deixou em sobre vida, distantes de uma cura e si mesmos, mas próximos de um impulso inesgotável de tentativas.

O cupido em sua figura libidinosamente infantil sempre proporcionou os mais diversos jogos de engano e frustração, próprios das conhecidas cirandas entre corações vivenciadas o tempo todo. Se estávamos doentes de eros, atualmente perdemos até mesmo a sensibilidade para sentir suas flechas vermelhas.

‘Os Amores Imaginários’ pincela a trágica ironia social de nossa juventude, adornada de cores e belezas num sentimento cool por aquilo que mais encanta e apaixona, mas ineficaz na rotatividade das ofertas e rostos. A doença lamentada por Antonioni deu lugar à uma cegueira generalizada em que não reconhecemos mais aquilo que nos toca ou nos deixa de tocar,  principalmente quando de fato não somos tocados. “Do you believe in love at first sight / It’s an illusion, I don’t care.

Exibido dentro da mostra ‘Un Certain Regard’ do Festival de Cannes de 2010, o filme é o segundo longa do prodígio e legitimado internacionalmente auteur Xavier Dolan, cineasta e ator canadense cujo primeiro filme ‘Eu Matei a Minha Mãe’ também estreou em Cannes que provavelmente lançará no próximo ano em Competição Oficial seu terceiro longa ‘Lawrence Anyways’.

‘Os Amores Imaginários’ como indica o próprio título apresenta a costumeira situação na qual criamos, num primeiro nível platônico, a falsa materialização e reciprocidade de um sentimento amoroso. O enredo envolvendo triângulos amorosos é extremamente comum no cinema envolvendo um não um ménage à trois propriamente consumado.

Desses tipos há casos como a felicidade colorida e satisfatória de ‘Splendor’, de Gregg Araki às ambigüidades sexuais e de identidade em ‘Três Formas de Amar’, de Andrew Fleming e a plenitude inicial do casal formado por Louis Garrel, Ludivine Sagnier e Clotilde Hesme em ‘Canções de Amor’, de Honoré para não deixa de lado a triangulação envolvendo laços fraternos em ‘Os Sonhadores’, de Bertolucci ou o acanhado e insatisfatório sexualmente ‘Os 3’, de Nando Olival. No caso desses últimos citados a regra de três sempre parece rechaçar uma das pontas à sobra ou ao desajeito ou como bem diz a música do Interpol there´s no I in threesome.

No caso do filme de Dolan não há nenhuma afetiva aproximação física entre os envolvidos fazendo que a insatisfação e o erro se tornem ainda mais comuns à realidade e ao tempo de relações medidas por virtualidades, mesmo dentro de um senso real de atitudes e encontros. Seus personagens estão sempre juntos, alternando seus estados abobalhados de contemplação e frenesi pelo outro aos níveis de ciúme e irritação blasé que nada fazem além de prolongar e suspender a expectativa por um acontecimento (no caso um amor) que tristemente jamais irá se realizar.

O filme inicia abruptamente com uma série de pequenos planos de depoimentos como o usual estilo talking heads de documentários. A opção por planos fixos em tons coloquiais de bastante pessoalidade juntos à utilização do zoom em meio às tomadas pretende intensificar a noção verossímil daquilo que é tudo. São jovens, meninas e rapazes, dizendo abertamente a câmera suas desventuras sentimentais, muitas vezes drasticamente cômicos pelo absurdo de algumas situações de obsessão e raiva pela rejeição sofrida. Tais blocos de depoimentos abrem o filme e retornam gradativamente durante a narrativa assumidamente ficcional.

Nela seremos apresentados ao casal de melhores amigos Francis (o próprio Dolan) e Marie (Monia Chokri) como quase sempre aparecem ser inseparáveis num casual encontro entre outros colegas. Enquanto estão na cozinha picando e preparando algo para comer na festa eles observam e comenta a presença e angelical beleza do novato Nicolas (Niels Schneider).

Nesta primeira cena, até pela gradativa supressão do som direto sobrando e assim enaltecendo o áudio duro da faca cortando algo, com os dois protagonistas encarados de costa para a câmera já saberemos dois pontos sobre a história que irá se seguir: haverá um conflito (quase uma pequena guerra como em todos os amores) trocando as facas do preparativo rígido do jantar para presentes e agrados dos mais diversos tipos, utilizando perfumes ao invés de armas e armaduras. Porém, ao final, tudo será visto de costas, com indiferença e desdém como um habitual mal entendido. Como em todas as batalhas depois de um certo ponto não se sabe mais para que se luta, aproximando-se do patético irracional como na cena em que Francis e Marie, antes melhores amigos, se digladiam no chão de uma floresta sendo observados apaticamente por Nicolas.

Assim o filme logo de cara expõe a fragilidade com que seus dois personagens deixam se encantar pela figura facilmente codificada de sortilégio e agrado presentes em Nicolas, com seu sorriso e olhares de empatia e delicadeza, os cachos belamente enrolados e loiros juntados à sua inteligência e gracioso senso estético e cultural como o gosto pelo teatro, música e cinema (vide a fascinação por Audrey Hepburn). Ou seja, Nicolas é teoricamente muito bom para ser verdade e como é de se esperar sua proposital inclinação bissexual fará com que a tênue linha entre a simpatia e a correspondência afetiva seja cada vez imperceptível aos olhos e corações de Francis e Marie.

O que irá se seguir é um gradativo desejo pelo outro em tese inatingível, mas cada vez mais próximo e real. Desejo e construção imaginária expressos muitíssimo bem na cena da festa de aniversário no apartamento de Nicolas na qual este é comparado através da montagem a desenhos de Cocteau e esculturas apolíneas de beleza masculina. Para Francis e Marie só existe a idealização e por isso mesmo quanto mais próximos acreditam estar de Nicolas, mais verdadeiramente distantes eles estão.

Paralelamente a estes momentos episódicos de conquista e aos também já citados blocos documentais de outros jovens existem cenas monocromáticas específicas mostrando em tons de amarelo, vermelho, verde e azul Marie e Francis respectivamente com espécies de fuck buddies de cada um, ilustrando belamente ao som de Bach como uma verdadeira reciprocidade sentimental e sexual também é, infelizmente, insatisfatória como se realmente acabássemos por desejar o ser idealizado que nos rejeita ao real que nos conforta.

As tentativas de Francis e Marie com inevitáveis respostas ambíguas de Nicolas a cada um deles intensificando a crescente admiração por um ser que no fundo não existe a não ser mente de cada um acabarão por levá-los a um duplo distanciamento: real de si mesmos na amizade que até então existia e imaginário neste sentimento fadado a frustração e amargura.

Como bem disse BatailleA essência da paixão é a substituição da persistente descontinuidade por uma maravilhosa continuidade entre dois seres. Essa continuidade é, no entanto, particularmente sensível na angústia, na medida em que é uma procura em impotência e em temor. Uma felicidade calma em que o sentimento de segurança é dominante só tendo sentido quando vem apaziguar um longo sofrimento que a precedeu. Para todos os amantes, há mais possibilidades de gozar duma desesperada contemplação da íntima continuidade que os uniu do que poderem duradouramente encontrar-se.” Ou ainda “As possibilidades de sofrer são tanto mais vastas quanto só o sofrimento revela inteiramente a significação do ser amado.”.

Sofrimento e continuidade que estão muito bem expressos na movimentação cíclica ao qual o filme se estrutura, apresentando no final a ótima sacada de trazer a presença de Louis Garrel, aquele que não só é motivo de interesse de rapazes e meninas independente de suas escolhas sexuais, como é também dentro do próprio cinema de arte contemporâneo o objeto de maior fetiche de cineastas e produtores tornando-se uma imagem auto-referencial do pedrigree cinematográfico europeu.

Esta seqüência final mostra também como realmente sempre estamos próximos para avançar no campo de batalha. A flecha atinge o peito, faz inflá-lo, traz felicidade, começa a sangrar. Não há problema, pois a insensível ferida logo estará pronta para novos perfis descobertos. Como numa guerra travada que acabara de terminar, basta que um único soldado ignore o armistício e atire uma bala (ou uma nova flecha) para que haja uma nova fatalidade amorosa e o conflito recomece infinitamente. Maior que os nossos sentimentos é a nossa imaginação.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação