O Corpo-Texto em Zarella Neto

A busca e a necessidade em reunir as multidões e os sonhos nos trabalhos autorais do fotógrafo paulistano.

Radicalizado na pastoral da carne, o corpo sempre ocupou papel dualístico – bom e mau – nas subjetividades humanas. Revelado nos rituais do cotidiano, ora pela indumentária, ora pelos adornos e pela capacidade atual de modificação, como a body art, a genética e a utilização de máquinas, que potencializam suas belezas e forças, o corpo é também o sentido para o uso estético no campo da moda. A costura no passado – moda no presente – sempre se encarregou de adorná-lo e colocá-lo em um diálogo com a arte. São estas linhas, trançadas ou marcadas pelas agulhas, que nos remete à segurança. O corpo trajado, costurado e enclausurado ressignificam o sonho tribal de união e garantia da vida.

É deste corpo e desta costura, pausados pela poesia e pela visceralidade, que o fotógrafo paulistano Zarella Neto, se ocupa em seu novo trabalho intitulado “O Costureiro”. Composto em 9 ampliações fotográficas, a série triunfa na beleza, justamente por desconstruir o conceito ocidental do belo, do profano, do sagrado, do horror, do real e do absurdo.

Em seus 33 anos de idade, o vencedor do leão de bronze do Festival de Cannes em 2006 e em 2007, Zarella transita em trabalhos voltados ao universo da moda e da publicidade. São dele, as imagens de campanhas para Toyota, General Motors, Motorola, Nestlé, Electrolux, Ford, Procter & Gamble, Goodyear, Nike, e parceria com as agências F/Nazca, McCann Erickson, Ogilvy, Young & Rubicam, Dentsu Latin America. No universo do prêt-à-porter trabalhou ao lado de nomes como Thelma Vilas Boas, Luiz Crispino e Mauricio Nahas.

Justamente aí, em consonância com a sua trajetória profissional, reside a força e a expressividade de suas obras. Há uma necessidade de restabelecer, e por vezes, desestabilizar os pontos corriqueiros que temos de alguns signos. Em “O Costureiro”, por exemplo, percebemos o cenário de um açougue, no melhor estilo Quentin Tarantino. O modelo Leandro Posselt em um ato de desprendimento de sua evidente beleza permite o duelo existente entre o artista e a criatura. Despido, não só no sentido carnal, costura peças de carnes ensanguentadas. Há uma espécie de paciência, de amor e solidão no trabalho que exercita, remetendo aos artesãos e ao ofício do próprio costureiro. Aparentemente, esquecemos a beleza do jovem modelo. O pensamento não só reflete sobre a condição atual do homem (corpo), mas conduz a uma nova reflexão, sem os clichês impostos, do que é a nudez, a carne, o ato de sacrificar um corpo, a natureza, o sangue e a própria figura de masculino e do feminino? Percebemos então, que é o embate entre a vida, a morte e o nascimento. Como bem definiu o produtor cultural Sérgio Franco sobre o trabalho do artista: “A liturgia de Zarella é puramente simbólica na busca pelo renascimento”.

O trabalho chamou a atenção dos críticos e especialistas em arte lusitanos. Ficou em cartaz na Galeria Colorida, em Lisboa, durante os meses de setembro e novembro deste ano. Sem previsão de chegada ao Brasil, onde foi concebido, “O Costureiro” pode ser visto na galeria virtual do site do fotógrafo: www.zarellaneto.com.br.

Zarella foi escolhido para representar a arte contemporânea brasileira, por evocar em seu trabalho o absurdo da realidade, ficcional ou não, transformando-a em novas possibilidades e olhares. Recentemente, despertou a curiosidade e a polêmica em sua última instalação na região do bairro da Luz. “Nossa Senhora do Crack” foi licença poética e manifesto de um artista autoral irrequieto, preocupado em chamar a atenção do poder público, da sociedade e da imprensa para a problemática social e de saúde. Criada em seu galpão, o estúdio Kott, na Barra Funda, a imagem foi colocada na região da Cracolândia. Ironicamente, os próprios locais destruíram e profanaram a santa.

Diferente de muitos artistas, e principalmente os da indústria pop – termo que não cabe em Zarella – o sagrado, profano, a religião, o corpo e a sexualidade não aparecem como transgressões inocentes e ingênuas. Há uma “crueldade”, um grito de alerta para a necessidade que aponta a filósofa espanhola Beatriz Preciado e sua teoria de corpo-texto, que inscreve este material humano não como organismo natural, mas como artifício, arquitetura, construção social e política. É necessário olhar o trabalho de Zarella Neto, neste sentido: um poeta do olhar, que deseja reunir as multidões (corpos) não para apenas libertá-los, mas para cumprir o que disse Fernando Pessoa em seus versos: “Meu corpo é máquina de sonhar. Todos os meus gestos, palavras e olhares são extensões deste sonho”.

BRUNNO ALMEIDA MAIA
brunnoalmeida@brrun.com

Fotos: Divulgação