Um Lugar Qualquer

I´LL TRY ANYTHING ONCE

Cada filme de Sofia Coppola é a um só tempo o registro de um estado físico e sua relação com o espaço e o tempo. Em todos eles, sob a clara e assumida influencia de Michelangelo Antonioni, somos absorvidos por personagens que por si só já nos aparecem também envoltos em uma inércia observacional, retidos principalmente nos espaços aos quais pertencem enquanto acabam por reter, através do tempo, também o olhar do espectador. Sofia assim cria a sensação de um eterno final de festa na qual nós e personagens estamos sempre num círculo vicioso e estagnado de um olhar que se repete. Nesta duplicação apática, ambas as forças contemplativas se anulam e o que resta é apenas o tempo vazio das duas relações, espectador-personagem, personagem-espectador. The party is over.

É importante pensar o papel desses personagens, sejam eles quais forem, já que à cineasta pouco parece interessar em grande medida os desenvolvimentos tradicionais do que se costuma se esperar de uma narrativa. É como se o roteiro servisse menos de medida às imagens do que ao próprio senso de direção, decupagem e principalmente atmosfera que as cenas acabarão por ter tanto individualmente como dentro da maior unidade. Seus personagens então pertencem mais a momentos e, novamente, a estados de posição ou ação do que propriamente a um enredo, uma costura de uma história a ser contada.

O cinema de Sofia acaba então por se articular através de blocos de cenas sempre permeados por uma sensação de aquário, estúdio fotográfico ou lounge filosófico. Seu universo é feito de imagens mais do que histórias, o que de longe não me parece um demérito, pelo contrário, sob uma tutela paterna já superada, ela pôde de maneira pessoal e honesta firmar uma mise en scene que sempre corre o risco de se tornar o sintoma de uma pós modernidade esvaziada e superficial.

A questão é que justamente esta tendência nada sintomática a justamente contemplar esse universo contemporâneo tão caro a ela, que vai tanto de suas referencias artísticas (cinematográficas, musicais) a principalmente sua própria vivencia, é o que faz seus filmes permanecerem tão expressivos em seu caráter visual e seu apelo contemporâneo. Um filme de Sofia Copolla é como um tumblr em vinte e quatro quadros por segundo, não sendo nenhum mero acaso o fato de muitos stills de sua cinematografia preencherem várias páginas do tipo, da mesma forma que imagens diversas de mesmo estilo conseguem incrivelmente se relacionar com seu universo e produção.

Seu mais recente filme ‘Um Lugar Qualquer’ (Somewhere), vencedor do Leão de Ouro do último Festival de Veneza, traz mais uma vez a forte presença de um vazio existencial latente, mas de impossível superação completa. Numa espécie de cartografia do tédio fácil ou do ócio embelezado, ‘Um Lugar Qualquer’ remonta um pouco o estado de espírito já experimentado em ‘Encontros e Desencontros’ (Lost in Translation), possivelmente pelo fato, segundo a própria cineasta, de ambos os filmes terem sido escritos no mesmo período.

Porém há específicas diferenças comparativas entre os filmes. A mais óbvia delas é o tipo de relação que há entre os personagens masculino e feminino, que ao invés de amigos próximos com certa ambigüidade sentimental são agora um pai e sua filha. O outro ponto já se refere mais a construção formal do filme, pois há em ‘Um Lugar Qualquer’ objetivamente a noção de um signo de repetição.

Em ‘Encontros e Desencontros’ os momentos vividos pelos personagens sozinhos ou em conjunto eram sempre suavizados por uma fragilidade carpe diem que não se alterava. Havia pouca mudança, surpresa ou alternância radical nos eventos. Já no filme agora em questão surge explicitamente uma figura de cansaço, uma força já esgotada que invariavelmente retornará ao seu ponto conhecido.

SPINNING AROUND

Isso fica claro já na seqüência de abertura que mostra num vasto espaço o movimento longo e dilatado de um carro fazendo inúmeros círculos repetidos em volta de um percurso que nunca se modifica. A câmera estática registra o aparecimento e desaparecimento do automóvel em quase slow motion pelo ambiente. Não há escapatória tanto para os corpos quanto para o nosso olhar, ambos estão condicionados a um sistema de circularidade, repetição, esgotamento. Em determinado momento não há mais nada para ver quanto para viver; corte, próxima cena.

Além deste primeiro movimento alegórico retornaremos a mesma idéia em outros momentos como, por exemplo, na cena em que duas garotas muito parecidas fazem uma performance de pole dance portátil no quarto do protagonista criando com seus corpos impossibilitados de qualquer excitação, já desengonçados de tamanho automatismo, movimentos circulares em volta da barra. Acontecerá outra vez na seqüência em que sua filha realiza um número de patinação numa pista de gelo retomando novamente essa figura que apenas gira, nada mais. E tudo que acaba por girar num dado momento pára ao perder sua força.

É nesta realidade um tanto particular de circularidades e inércias que se situa o famoso hotel Chateau Marmont que abriga diversos tipos de celebridades e artistas cultuados. É lá que Sofia, antiga freqüentadora low profile, situa seu protagonista, o ator hollywoodiano Johnny Marco (Stephen Dorff) e sua vagarosa rotina supérflua e vaporizada de encontros casuais, pequenos compromissos protocolares da fama e carreira, festinhas privadas e adormecimento. O tédio gerado nada mais é do que um grande falso polarizador de tranqüilidade já que, como Sofia bem sabe, a superfície que separa o cômodo do comodismo é extremamente sutil e charmosa.

Tudo aparentemente começa a mudar a partir da chegada da filha de Marco, Cleo (Elle Fanning), uma adolescente delicada e amável com o pai e consciente da frágil situação que se encontra seus vínculos familiares. A chegada um tanto inesperada da garota fará o ator redescobrir a presença desse mesmo vínculo até então tão protocolar quanto seus compromissos locais ou internacionais, festivos ou apáticos, deslocados e distanciados tamanha sua figuração. O fato de Cleo permanecer ainda mais tempo com Marco devido a ausência materna em determinado momento acabará fazendo com que a condução meramente superficial dos encontros, trocas e afetos entre eles atinja um ponto momentâneo de vivacidade.

Passado este lampejo inspirado retornaremos ao mesmo estágio de afazias e repetições. Não que seja impossível identificar transformações, elas existem, mas acontecem dentro do percurso que será realizado e não naquilo que este mesmo percurso irá realizar. Ou seja, por mais que rotações sejam feitas, viagens, brincadeiras, gracejos e emoções despertem as consciências e atitudes individuais, principalmente as de Johnny Marco, no final do circuito chegaremos ao mesmo ponto. Um lugar qualquer se torna nada mais é que um lugar nenhum dentro de todos os lugares possíveis de Sofia Coppola.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com