Um Lago

Je ne parlerai pas, je ne penserai rien,
Mais l’amour infini me montera dans l’âme ;
Et j’irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, heureux- comme avec une femme.

Arthur Rimbaud, ‘Sensation’

TEMPERATURA PRIMITIVA

Uma das questões mais recorrentes na feitura e apreensão de um filme é aquela voltada à história. A história, em minúsculo mesmo, mas ironicamente tão poderosa quanto uma entidade por fazer com que espectadores (e produtores) possam apontar o dedo para a tela e ao realizador da obra pela condenação do crime do não contar. Já que fazer um filme é (ou pode ser) contar uma história, dentro de uma gama extensa de outras opções e definições, por favor, a questão a ser pensada muitas vezes recai muito mais em como ao invés de o que contar. O embate entre forma e conteúdo mais uma vez restabelece uma série de paradigmas e paradoxos mostrando que em determinados projetos um tende a pedir a existência do outro e vice versa, mesmo que em casos particulares, e são muitos, exista uma tendência maior a pender mais para um lado do que para o outro.


Outra questão existente nos diz respeito ao sobre. No caso de ‘Psicose’, de Hitchcock, se perguntássemos sobre que é a história do filme poderíamos responder facilmente pela própria indicação do título que ela trata de um distúrbio psicótico de determinado personagem, sua relação maternal doentia e eventuais crimes relacionados a este comportamento. Porém, o filme gira em torno de uma estrutura que em si poderia ser narrada enquanto a história de Marion Crane com todas suas ações que iriam do roubo até sua estadia no hotel Bates, ou seja, seu percurso tanto físico quanto aquele dentro da cronologia do filme. Não é a toa que em inglês tal descrição é chamada de storyline.

Tudo isso para falar de ‘Um Lago’ (Un Lac), terceiro longa metragem de Philippe Grandieux. Formado em cinema pelo INSAS (Institut National Supérieur des Arts du Spectacle) em Bruxelas, começou sua carreira com pequenos filmes de ficção e documentários ou fazendo apresentações experimentais videográficas em museus belgas. Desde os anos oitenta Grandieux vem trabalhado com o INA (French Institut National de l’Audiovisuel) aonde ele vem procurado desenvolver novas maneiras de trabalhar sua cinematografia e novos formatos de imagem. Além disso, dá aulas de cinema na famosa FEMIS (Fondation Européenne pour les Métiers de l’Image et du Son) onde outro grande e particular cineasta, Philippe Garrel ministra aulas, além de trabalhar também na l’Ecole à l’Ecole Nationale Supérieure des Beaux Arts em Paris.

Sua obra recebe influência dos trabalhos de Edmond Bernhard, seu professor no INSAS, Murnau, Robert Bresson, Jean Marie Straub e Daniele Huillet, Rainer Werner Fassbinder, Stan Brakhage e também das leituras de Marc-Aurèle, Spinoza e Gilles Deleuze.

Apesar da obscura filmografia e do enorme desconhecimento do público e até da crítica por seu trabalho, Grandieux conseguiu em pouco tempo construir uma sólida carreira pautada em filmes rigorosamente bem produzidos, com um profundo conhecimento técnico sobre a produção de sensações. Seu cinema é construído por uma expressiva capacidade sensorial pouco vista, como se eles exalassem termicamente tudo aquilo que é mostrado e ouvido através da tela. Poucos cineastas sabem criar atmosferas e uma empatia com os cinco sentidos como ele, principalmente pelo exímio cuidado com a direção de fotografia e o design sonoro, pois tudo se materializa e vibra. Nossas sensações possuem um timbre, elas respiram, gemem, reverberam o espaço audível.

Seus três filmes de ficção refletem claramente um estilo bastante natural na caracterização visual dos seus planos. Em todos eles é possível reconhecer esta marca, este modo de contar e principalmente de mostrar (mesmo quando isso signifique esconder). Isso aparece bastante em ‘Sombre’, vencedor de um prêmio no Festival de Locarno, ‘La Vie Nouvelle’ e neste ‘Um Lago’, exibido e premiado com menção especial dentro da Mostra Orizzonti dentro da 65ª edição do Festival de Veneza, seção usada para exibir trabalhos vanguardistas que procuram superar a linguagem cinematográfica vigente. São filmes que extrapolam o simples senso de pensar no set up específico da colocação da câmera ou seu enquadramento, sua movimentação.

Se no início chamei atenção para a narratividade do cinema foi para poder pensar o cinema de Grandieux dentro de um conceito narrativo que não se limita a maneiras pré-concebidas de contar. Isso se deve principalmente a sua formação e estudos voltados a experimentações feitos no início de sua carreira. Seguindo a linha de pensamento de artistas como Teionosuke Kinugasa, Jean Epstein e Pier Paolo Pasolini, três cineastas preocupados com o ato de narrar uma história através de novos procedimentos, articulações de planos, Grandieux pôde se diferenciar dos demais cineastas por aquilo que todos deveriam ter de mais elementar: suas imagens.

Derivadas do cinema avant garde, da vídeo arte e do cinema de horror, elas puderam encontrar dentro de sua forma narrativa o espaço adequado para se fundir numa marca muito particular. Seus filmes, todos eles, não se preocupam exaustivamente com mecanismos de roteiro ou o tempo necessário para estabelecer uma ação e seus desdobramentos. O que interessa a ele é a formação de um imaginário, por isso a perceptível inclinação a um universo que remeta a uma sensação mítica, lendária ou de contos de fadas como princípio de arquétipos que serão depois transpostos a uma realidade contemporânea. Sua câmera se metamorfoseia na própria lente, sendo ela o olhar inflado de um real sonhado, manchado por umidade e desfoques, quase sempre trêmula e agitada ou variando a uma letargia contemplativa.

O cinema de Philippe Grandieux respira ofegante, pois sente o mundo, envolve o espaço para depois devolvê-lo sem ar, agonizando e se revitalizando em seguida. Sua câmera transpira, pulsa incrivelmente como parte da história, sem ela não só não existiria filme pela impossibilidade da captação, mas não existirá também enquanto tipo específico de filme. Não basta ter a técnica, o dispositivo, é preciso fazer determinado uso dele, saber como manipulá-lo, reinventá-lo, atribuir novos modos de utilização.

Suas histórias são contadas a partir de uma imagem cambaleante que se coloca como um meio estado entre o mundo e suas atribuições físicas, sensoriais, de temperatura, cor, vibração e o universo subjetivo dos personagens. Ela é a fronteira, o inevitável choque entre esses dois lados que normalmente são fixados como elementos independentes que meramente se relacionam durante o tempo do filme. Aqui existe a transformação de um aparato mecânico em fusão com dois universos que se moldam simultaneamente.

Os filmes são como visões, clarões inesperados seguidos por uma escuridão amedrontadora, remetendo a lembranças de infância, medos antigos e genuínos de qualquer ser humano. Não por acaso seu primeiro trabalho mais conhecido chama-se ‘Sombre’ e começa mostrando a reação de crianças a uma encenação ambígua de fairy tale e horror, até porque como todos sabem os contos que costumávamos ouvir na cama a beira do sono eram originalmente muito mais cruéis e horríveis do que vieram a ser com o passar do tempo.

Grandieux entende a função mítica do sonho e do cinema enquanto produção de um imaginário e transpõe isso para suas histórias. No caso específico de ‘Um Lago’ pouco ou nada se sabe sobre seus personagens, o antepassado de suas vidas ou qualquer traço psicológico mais profundo e complexo. Quando surge algum diálogo ele acaba por ser descritivo das funções de relação, anunciando nomes e os graus de parentesco ou conhecimento entre uma pessoa e outra.

Acompanharemos a rotina isolada dos irmãos Alexi (Dmitry Kubasov) e Hege (Natalie Rehorova) numa região composta por uma imensa floresta escura, muito gelo e claro, um lago, figura de espelhamento e trajeto, reflexão interna e externa do mundo e daqueles que o habitam e ao mesmo tempo local que serve de passagem, que antigamente parecia guardar monstros, segredos e outras aparições desconhecidas. O lago do título não é apenas uma locação, mas discretamente trará e levará aquilo que movimentará a sutil narrativa do filme.

Como um conto infantil obscuro, ‘Um Lago’ foi feito para ser visto a noite, com nenhuma luz exceto a da tela, de preferência envolto numa situação coberta, na cama. O filme pede o recolhimento, principalmente em suas cenas internas, dentro de uma casa ou cabana. São cenas de iluminação muito pontual, recortes de luz frágeis como os de velas distantes. Os cômodos se transformam em cavernas ao mesmo tempo aconchegantes e asfixiantes, soturnas, abafadas, com pouca nitidez. É um convite ao sono e a calmaria, alternados pela agitação e brutalidade da natureza gelada do meio externo, exigente a esforços físicos e ao cansaço cotidiano.

É quase um teatro de sombras, resgatando os estímulos sutis que separam o sonho do pesadelo, uma imagem de reconhecimento imediato do estranhamento oriundo da fabulação noturna. Grandieux sabe como enfeitiçar o simples modelo de contar uma história pelo que ela tem de mais rústico, original e antigo, a força de uma assombração. A isso se lê vibrações de luz e sombra, sonambulismos e vigílias por espaços movidos a faróis de carro, lanternas ou lâmpadas enfraquecidas, rodeado por estradas, caminhos, céus que parecem desabar sobre as cabeças. Assombração trêmula, lânguida e entorpecida por um estado cinético reduzido. O cinema de Grandieux oscila entre o nervosismo do horrível e a afazia do descanso.

Não há foco e estabilidade capazes de suportar o encanto produzido pela força de suas imagens. A fotografia se curva ao poder da própria lente, entortando todos os pólos de orientação. Para contar uma história ele busca apenas o essencial, estados de corpo e estados de alma unidos numa só freqüência assustada.

O que importa ao diretor não são informações adicionais ou explicativas sobre o ambiente ou aqueles personagens que se interagem ou não na paisagem, mas sim o que exalam seus corpos e o ambiente em volta deles, como respiram, se movem, olham, comem, tocam, adormecem, sentem. Espaço e corpo são um só e respondem aos mesmos estímulos da câmera, aquela que irá reconciliá-los numa mesma sintonia.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação