Trilogia da Morte: Gerry, Elefante e Últimos Dias

JUVENTUDE DESACORDADA

Gus Van Sant desenvolveu uma carreira que teve seu surgimento dentro de um chamado novo cinema underground americano, procurando estabelecer gradativos elos, mesmo que sutis num primeiro momento, com o grande cinema comercial vigente em seu país. Um elemento sempre presente em seus filmes é o apaixonante olhar que o cineasta possui à juventude e todo o universo particular de seus personagens que acaba recaindo inevitavelmente em questões referentes à imagem. Imagem esta dupla, tanto enquanto da moral do cineasta e seu poder político ao compreender a potência do cinema enquanto aquilo que pode restituir e projetar com máxima força um mundo a ser fetichizado em todos os seus sentidos, dos mais simples e naturais aos plásticos e enfeitados de subjetividade; além de captar o próprio instante na vida de qualquer pessoa em que a imagem de si e deste mesmo mundo se confundem num amálgama de beleza, reflexo e desorientação.

Certamente estes são grandes pilares da filmografia de Sant que são constantemente resgatados e atualizados de acordo com o tempo e a essência original presente em cada novo filme. Os três elementos apontados há pouco, da beleza, reflexo e desorientação, são personificados, literalmente, nos filmes na caracterização de um (ou mais) corpo(s). A fórmula da reversão filosófica “Dê-me portanto um corpo” existe como nunca, pois independente do fato óbvio da existência de uma massa que caracteriza qualquer personagem dentro de uma trama, nesses cineastas e consequentemente em seus filmes a figura de um corpo que se destaca enquanto função de imagem, espaço, tempo e história é quase incomparável a outros tratamentos naturais de sua mesma apropriação na tela. A fórmula recai então sobre montar a câmera sobre um corpo, cotidiano, idealizado, abandonado, na latência de uma inércia, figurada em rituais diários ou solta em desvios.

O corpo nunca pertencerá ao presente, ele sempre irá conter o antes e o depois, o cansaço, a espera, o êxtase, o conhecimento e sua ignorância perante aquilo que antecipa, sendo esta angústia desconhecida por um dado inevitável. O destino deste corpo é o destino do cinema, um eterno apagamento programado e prefigurado pela necessidade de restituir esta mesma imagem inúmeras vezes, em incansáveis retornos até o reconhecimento absoluto de sua natureza.

O cinema de Sant responderá a este corpo jovem todas as suas necessidades e virulências, sua vaidade, anseios, desconstruções imaginativas, seu furor e seu cansaço. Traços desse movimento do cineasta a seus personagens são encontramos desde seu primeiro longa metragem ‘Mala Noche’, espécie de ‘Acossado’ [A Bout de Souffle] gay a outros filmes como ‘Garotos de Programa’ (My Own Private Idaho) com os eventuais desmaios do personagem de River Phoenix ou mesmo a massa engajada de Harvey Milk em ‘Milk’ que servindo-se da infeliz veracidade dos fatos, acabará, naturalmente, sendo derrotado enquanto corpo físico. Em Sant estaremos a todo momento na idealização desta visão, basta lembrar seu episódio para ‘Cada um com Seu Cinema’ (Chacun son cinéma ou Ce petit coup au coeur quand la lumière s’éteint et que le film commence) no qual ele transforma um projecionista no deslumbre juvenil com ares de ‘Lagoa Azul’, brilhante e solar na tela ao lado de uma figura feminina tão cara quanto o menino a seu cinema.

No caso da chamada ‘Trilogia da Morte’ temos claramente o sintoma de sua condução narrativa. Nos três casos estaremos diante de um percurso, quase sempre literal inclusive, a um apagamento gradativo destes corpos. A morte não seria exatamente o fim, a não ser dos próprios filmes, pois a todo o momento ela já é uma antecipação, é o próprio presente da imagem. Em tese não irá acontecer, pois já aconteceu e ainda assim ela não acontece até o diretor dar corpo a ela no desfecho de cada um dos filmes. Seus personagens são arrastados nos três filmes por uma estranha força invisível, não só a mão do diretor, mas todo um plasma cristalino, como se estivessem dentro de um espelho (Orfeu refratário) cujo reflexo é somente este intervalo específica da vida, no caso a duração do filme e seu recorte temporal, mas também a adolescência e juventude.

Se em ‘Gerry’ já estaremos no céu, ‘Elefante’ de mostrará um grande inferno gelado e azul e ‘Últimos Dias’ nada mais é do que um úmido limbo esverdeado. Paralelismos religiosos a parte, até por não existirem nas obras, este é um modo sinestésico bastante elucidativo para vislumbrar os três filmes. Em todos eles a morte acompanha, ela está ao lado, mesmo que numa dimensão ainda não visível, poderia dialogar se pudesse, mas ela apenas espera a caminhada acabar. Existe o tempo, enquanto todo o espaço será preenchido.

Figura importantíssima em todos os filmes é o elemento da deambulação, demonstrada de diferentes modos em cada um, possivelmente sendo em ‘Gerry’ a sua utilização mais radical e extrema, mesmo que ‘Elefante’ possua um impacto mais evidente pela articulação formal de sua narrativa. A deambulação ressurge em Sant a partir da referência, explícita nos créditos, ao cineasta húngaro Béla Tarr.

Em vários de seus filmes Tarr apresenta a deambulação como a grande força motriz de sua narrativa e de seus personagens, ficando em muitos casos inclusive o evidente fluxo que os move em suas direções variadas. Não é a mera deambulação natural de um roteiro ou a figuração da balada ou do maneirismo, é outra coisa. Em Tarr e depois também em Sant o caminhar, a passagem pelo espaço e principalmente pelo tempo é um vetor. Como um vetor de corpo, são linhas, fluxos líquidos e aéreos de procura ou então de confusão. O plano seqüência serve magnificamente a esta intenção porque faz tende na baziniana ‘proibição da montagem’ a aproximação latente com o real, não aquele que podemos considerar como a realidade, mas enquanto fenômeno de um efeito e poder reais, até porque no caso de ambos os diretores e em Sant mais ainda, esta utilização do plano seqüência nunca foi tão vigorosa enquanto procedimento formalista.

Em ‘Gerry’ a utilização do plano rarefeito e alongado surge já em sua primeira seqüência sendo todo o filme uma dilatação exaustiva e ao mesmo tempo idílica. Há uma estrada e um carro que estaremos seguindo de maneira distanciada e objetiva. Ao corte passaremos para a frente do mesmo carro onde poderemos observar dois personagens masculinos, interpretados por Matt Damon e Casey Affleck. O terceiro corte nos dará a imagem objetiva da estrada do ponto de vista dos personagens ou pelo menos da frontalidade da mesma vista por eles. É uma serie que será recorrente nestes primeiros minutos e feita por planos consideravelmente longos, inclusive com um registro de flaire solar dos mais inspirados e belos já vistos, de tonalidade rosada sobre o corpo de Damon.

Seguiremos estes personagens no carro até que param numa espécie de parque de visitação ou grand canyon turístico, mesmo que bastante vazio e inóspito em suas condições ambientais. Os dois começam caminhar por extensos caminhos enquanto ocasionalmente conversam em um clima ainda descomprometido e até alegre. Porém em determinado momento eles parecem perder a orientação e não conseguem mais identificar o ponto exato no qual estão e para onde devem seguir para reencontrar o local inicial onde está o carro ou mesmo qualquer outro onde possam encontrar outras pessoas e consequentemente ajuda caso passe muito tempo. A partir daí o filme irá continuar acompanhando longas caminhadas e paradas dos dois em direção a um esfacelamento físico e mental.

Não há direção possível, pois todas fazem parte de um grande todo vazio e silencioso, mesmo que inegavelmente tão belo e virtuoso como a câmera faz questão de apresentar. Auxiliado pela magnífica trilha sonora de Arvo Pärt com ‘Spiegel im Spiegel’ e ‘Für Alina’, ‘Gerry’ vai decompondo a relação em tese espelhada destes dois rapazes de nomes idênticos, numa troca ambígua entre a amizade e uma outra ligação mais íntima e sentimental, elemento que nunca escapa aos filmes de Sant, mesmo que seja mostrado de maneira mais sutil ou não. Mesmo a inevitável morte de um deles trará consigo esta ambigüidade do verdadeiro acontecimento, pois em determinado momento do filme ambos os personagens e, claro, seus corpos começam a passar para um estado de sonambulismo que se tornam quase espectros dentro da paisagem que a tudo absorve e apaga. Não haverá grandes reações a um enredo construído, pontos de virada ou enfadonhas construções psicológicas e antecedentes. Não isso que interessa a esta história, seu preenchimento recai sobre o momento presente deste circuito de meia vida que às vezes cintila, às vezes se apaga, brilha e escurece.

Todos esses filmes em questão fazem jus a este estratagema de elétrons na tela prestes a se decomporem, avançarem novas posições orbitais e que para isso precisam percorrer esta linha antes do seu último espasmo de juventude e luz. Os personagens são pontos, mediados por áreas, espaços que no caso de ‘Gerry’ os dilatam através do tempo para o exterior, tão profundo e vasto, já no caso de ‘Elefante’, dilatados na duração para o interior, num espaço localizado, feito de outra estrutura de percurso.

Em ‘Elefante’ a deambulação, a afazia do corpo e sua condução inevitavelmente funesta e límpida, suave, embelezada estarão, diferente de ‘Gerry’, determinado por um esquema de articulação engenhoso, não que isso seja melhor ou pior comparativamente. Há neste segundo filme da trilogia um dispositivo, ou seja, todo o filme, sua narrativa é raciocinada dentro de uma estrutura regida por essa articulação minuciosa dos eventos e desdobramentos. A circularidade de sua narrativa novamente ecoa Tarr e seu modo de filmagem dos personagens, os acompanhando na duração de seus movimentos, mas também a amplia de acordo com a nova história e proposta a uma ação de presença, neste caso a da programação dos eventos e movimentos, sua aparente liberdade e o mecanismo de controle por parte dele, afinal estamos à maneira foucaultiana dentro de uma instituição, uma high school em Portland, Oregon e a aproximação com o vídeo-game cabe bem a esse sistema de filmagem e maquinismo de seus personagens no filme.

Aqui estaremos novamente diante de uma juventude solta em suas movimentações, na independência de suas atitudes e na presença indefesa diante de um evento de catarse e tragédia quase anticlimáticos. A morte em Sant precede um réquiem e não o contrário como normalmente se esperaria. É preciso à juventude avançar o limite da imagem, ao mesmo tempo em que esta mesma juventude acabe por ironicamente reunir todos os limites da e das imagens, é seu ponto de maior acúmulo, vibrações e por isso mesmo refrações. Todos sabem para onde estão caminhando, mas mesmo assim estão sujeitos a se perder, seja num grande deserto ou nos corredores de um colégio.

‘Elefante’ procura reconstituir a sua maneira um evento como o de Columbine, no qual alunos entraram armados na instituição assassinando covardemente uma série de outros estudantes. O filme, vencedor da Palma de Ouro em 2003 no Festival de Cannes, diferente de outro filme sobre o mesmo assunto, ‘Tiros em Columbine’(Bowling for Columbine), de Michael Moore, não apenas troca o tratamento documental pela apreciação da ficção e todos seus recursos. Mesmo que Sant idealize a plataforma de construção escolhida, com sua narrativa de retornos e simultaneidade de ações e eventos, bem como a utilização extremamente sublime de ralenti com seus slow motion muito bem utilizados, seu raciocínio é esvaziado na medida em que não há intenções de glorificação, nem por parte dos assassinos como por parte das vítimas. A identificável frieza de seu filme está na maneira com que ele se distancia deliberadamente da emoção que poderia facilmente ser utilizada pela maioria de cineastas, recusando esse encantamento pelo espetáculo da morte à moda de um Gillo Pontercorvo em ‘Kapò’. E mesmo ainda que procure dar razões ao ato homicida, a introspecção e deslocamento social de um e aparente rebeldia do outro, os vídeos de propaganda nazista, os vídeo-games violentos, a facilidade da compra de armas de fogo pela internet e até mesmo a relação homossexual (vindo de Sant um cineasta assumidamente gay e sempre preocupado com o tratamento relacionado à questão) não servem para racionalizar o que aconteceu. Todos acabam sendo pistas falsas ou uma reunião que elementos que podem guiar um espectador já provido de preconceitos ou impressões prontas sobre o ocorrido. No final de toda análise elas nunca serão suficientes para explicar o que infelizmente acontece e acontecerá inevitavelmente.

Acompanharemos ao longo de todo o filme alguns personagens específicos, caracterizados formalmente com cartelas nominais, em meio a outros corpos estudantis. Através destes alunos destacados faremos com eles os mesmos trajetos em mais um dia comum nesta instituição, chegando ao ponto de retornamos exatamente os mesmos trajetos a partir do ponto de vista do outros alunos numa narrativa geométrica que nos fará após a duração das seqüências tem um sentido amplo e total da geografia do colégio, o tempo cronológico aproximado de certas ações individualizadas e dentro do todo, além de transformar a iminência do ataque algo ainda mais poderoso e incontrolável.

A câmera que ainda remete a Tarr de ‘Gerry’ ganha um outro automatismo próximo á condução vista de trás presente nos jogos de vídeo-game aludidos explicitamente no filme. A utilização da steadycam intensifica ainda mais esta presença que acompanha silenciosamente sem cessar esses personagens, pois ela não se limita às variações de terreno, do próprio espaço, ela segue indeterminada, faz curvas, entra em salas, espaços vazios, fechados, pode subir e descer escadas, se esconder dentro de uma sala de aula, fotografia ou até mesmo num pequeno frigorífico da cozinha. Não há escapatória para esta câmera, para te olhar frio e curioso por sua estrutura, pelo seu inevitável desfecho. Ao mesmo tempo fetiche indiferente por uma tragédia já prevista e sutilmente ignorada pelo esvaziamento emotivo de sua realização plena enquanto dor. O tempo já é passado. Por isso mesmo o filme já começa voltado ao céu, seu retorno ao final será apenas uma memória e confirmação daquilo que já se sabia. Todos os personagens já começam mortos como na esfera de um filme de horror. O lugar celeste é garantido a esses meninos e meninas que quando aparecem em cena já possuem um corpo inexistente ou o que resta ainda a existir antes de sua fusão ao vazio.

Tal constatação nos encaminha ao terceiro filme da trilogia, ‘Últimos Dias’. Aqui o espaço é simultaneamente bastante amplo e também fechado, como se realmente estivéssemos no resultado dos filmes anteriores. Não mais as iluminações em rosa e amarelo do solar ‘Gerry’ ou a frieza azulada e a limpidez arquitetônica, ironicamente quase hospitalar, de ‘Elefante’. Em ‘Últimos Dias’ prevalece a natureza úmida, verde, como que formada por fungos, madeira, decomposições a espera de seu último suspiro. Neste limpo, espécie de cabana ou sobrado em meio a uma vegetação ou mata fechada, bosque está o personagem do filme, um rockstar que não se adequa nem a um ostracismo quanto a uma fama recompensada. Ele, numa alusão clara a Kurt Cobain e seus ‘últimos dias’, está exatamente neste meio intervalo, é o meio termo desses pólos de resistência, pois resiste tanto aquilo que já fez na carreira e também a um estado cada vez mais forte de desaparecimento. Sua temporada naquele local numa espécie de hiato ou momento de reflexão espera, cansaço, desanimo criativo e existencial é preenchida por outros personagens que vão de vendedores que aparecem promovendo algum serviço ou empreitada, a muitos amigos que passam e se estabelecem para depois novamente irem embora, com destaque para Kim ‘Sonic Youth’ Gordon num diálogo de puro abandono de ânimo e vitalidade. Passam dias, noites entre caminhadas pela vegetação, terra, árvores, folhas e também pelos cômodos da residência, seja na inércia musical, na absorção de um vazio, a anorexia da existência cada vez mais fantasma. Neste baile de figuras escondidas e lentas, que ouvem ‘Venus in Furs ‘ e namoram naturalmente, o personagem tende a uma invisibilidade absoluta.

Ao final da jornada mais uma vez sentida e prevista em direção ao aniquilamento do corpo jovem, assistiremos literalmente a um desprendimento. Assim Gus Van Sant encerra sua trilogia mortuária do modo mais sensível e belo possível, mostrando nada mais que uma ascendência in vitro ou in tela. O corpo se evola em direção a uma nova imagem, a transfiguração acontece e a juventude então sobrevive.

MATHEUS MARCO
matheusmarcos@brrun.com

Fotos: Divulgação.