Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas

“De duas mortes e de três nascimentos. Meu filme nasce uma primeira vez na minha cabeça, morre no papel; é ressuscitado pelas pessoas vivas e os objetos reais que eu utilizo, que são mortos na película, mas que, colocados numa certa ordem e projetados sobre uma tela, se reanimam como flores na água.”

Robert Bresson ‘Notes sur le Cinématographe’, 1975

QU´EST-CE QUE LE CINÉMA?

André Bazin, famoso crítico e teórico francês, editor chefe da renomada Cahiers du Cinéma e mentor dos cineastas da Nouvelle Vague, havia formulado tal questão numa coletânea de textos publicados entre os anos de 1958 e 1962. A pergunta, que é muito mais uma charada do que realmente uma questão a ser respondida, recai em grande parte no que o próprio Bazin chamou de Ontologia da Imagem Cinematográfica. O filme de Apichatpong Weerasethakul é quase como uma revelação a propósito do que seria a própria essência do cinema. Revelação no exato sentido de um filme a ser relevado, precisando da oscilação mágica que ocorre entre os reflexos de luz e sombra na criação de uma imagem.

‘Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas’ (Loong Boonmee raleuk chat) talvez seja o mais singelo e por isso mesmo poderoso filme já feito sobre o cinema, por mais exagerada que possa soar uma afirmação como essa. Destituído de qualquer maneirismo ou metalinguagem, até mesmo de qualquer discurso ensaísta ou reflexivo, ele consegue sutilmente falar sobre a formação de uma imagem a partir de sua transfiguração. A captura, o desprendimento e a revelação, o registro de uma aparição.  Pois se o filme trata de alguma coisa, mais do que da morte, seria sobre o aparecimento por meio de uma passagem. Curioso pensar no tratamento dado a este estado de alma, espírito após uma inevitável comparação com ‘Enter the Void’, exibido em Cannes um ano antes de ‘Tio Boonmee…’. Em ambos havia o efeito da passagem entre vida e morte e mais ainda, entre morte e vida, dentro de uma chave lúdica; no caso de Noé num estrabismo alucinante, em Apichatpong na forma de uma sublimação, nos dois sob o signo da luz.

A diferença é que no filme em questão essa luz é revisitada em negativo, ou seja, revelada pelas sombras, pelo escuro. A respeito disso me utilizo de um belo texto Luiz Carlos Oliveira Jr. a propósito de ‘A Erva do Rato’, de Julio Bressane. As palavras do crítico a respeito do filme de Bressane e ainda a citação do próprio cineasta no início do texto poderiam ser facilmente usadas para falar também de ‘Tio Boonme…’ em toda sua magnífica utilização da fotografia não só enquanto técnica inerente a qualquer filme, mas também pela relação ao mesmo tempo temática e filosófica presente, mesmo que mais explícita no caso de Bressane. Luiz Carlos diz em determinado momento “Menos luz, aqui, significa mais visão, pois a luz não surge em oposição à sombra, e sim como fenda no meio desta. É preciso que o céu esteja escuro para se ver as estrelas, do contrário elas são ofuscadas pelo nosso excesso de luz artificial.”. Aqui acontece o mesmo fazendo com que inclusive possam ser filmes irmãos numa ótica aparentemente estrábica.

Resgatando novamente Bazin existe por trás do fascínio do cinema este poder de fixação, permanência ou controle sobre uma determinada visão a ponto de sua eternidade, ou em outras palavras, a uma reprodução infinita de si, sua conservação, a memória do sempre. Em ‘A Erva do Rato’ há uma enorme obsessão por essa imagem culminando até mesmo num deteriorar absoluto pela matéria. No caso de ‘Tio Boonme…’ a imagem se transfigura ou recomeça (como já havia de maneira radical na estrutura narrativa de ‘Mal dos Trópicos’ [Sud Pralad]), ela ainda é a mesma na sua essência, porém nesta transformação adquiriu um novo caráter visual, uma nova forma. A revelação que vai ao aniquilamento, reforço da vida na morte de um lado enquanto no outro o revelar em direção ao aparecimento, exposição da morte numa nova vida. Não seria esta a potência do cinema? De um lado constatar e lembrar aqueles que não mais existem, sua lembrança funesta, a memória de um corpo, um close, por outro lado a fascinação por poder mostrar sempre uma vida em acontecimento, movente, vibrante, luminosa, independente de sua existência anterior: a tela do fantasma.

Um fantasma nada mais é do que uma imagem e como a luz pode também ser compreendido dentro de uma dualidade onda-partícula. No fundo é um ‘entre dois’, nem corpo, nem espírito, aprisionado enquanto um holograma. O fantasma é a própria definição de uma projeção cinematográfica, assombrando com enorme beleza e horror a brincadeira obscura de todas as sessões. Apichatpong reconhece o caráter fantasmático do cinema e com muita delicadeza soube exprimir dentro de sua história a manifestação evidente desta relação com uma imagem em iminência de seu surgimento. ‘Tio Boomne’ é permeado por esse sentimento quase lendário, mítico por todos os lados. Dos raios de sol amarelos e estróbicos na janela do carro no início do filme, ao pisca-pisca presente numa das últimas cenas passando pelo luar, as estrelas e a lanterna dentro da caverna. Sim, a caverna.

Tio Boonme (Thanapat Saisaymar), o personagem, está sofrendo de um terrível problema de insuficiência renal e sabe que gradativamente acabará morrendo por conta disso, mesmo com o tratamento que vem fazendo. Então ele resolve ir para uma casa afastada em meio a uma enorme zona rural tailandesa próxima de uma imensa floresta. Lá ele reúne alguns entes queridos e vive um cotidiano tranqüilo em meio à natureza e conversas em torno de abajures e atividades simples como uma habitual refeição. Durante um desses jantares em família ele recebe a visita do espírito de sua falecida esposa, bem como a de seu filho, Boonsong (Geerasak Kulhong), que retorna ao lar metamorfoseado numa outra figura após muito tempo desaparecido. Com o passar dos dias Boonme começa a sentir que seu momento está se aproximando e resolve ir com os seus poucos parentes até uma caverna local a fim de passar seus últimos instantes de vida, já que teria passado lá a sua primeira vida.

Talvez seja a melhor referência ao mito da caverna de Platão, ainda mais por sua suavidade, enquanto local propício ao estalo cinematográfico, ao surgimento descontrolado de imagens que ao mesmo tempo encantam e assombram. Há um pouco de filme de terror em ‘Tio Boonme…’, não enquanto susto ou ferramentas de impacto, grafismo ou suspense e sim aquele horror noturno, das histórias infantis, as lendas e imaginações de leito (de adormecimento ou morte), o encantamento pelo desconhecido, o escuro que assombra silenciosamente até o seu reconhecimento. O que assusta é sempre aquilo que não conhecemos ainda, o que não é visível.

Em determinada momento do filme o personagem fala a respeito desta cegueira dos olhos abertos, pois talvez a visão ainda não esteja acostumada com a escuridão. É novamente a inversão fotográfica, o seu negativo, para que haja a revelação é preciso antes a escuridão.

Primeiro a luz a capturar a imagem ou, ao contrário, a imagem pura necessitar ser cegada pela luminosa, nada a ver, para que possa então depois ser vista. O procedimento de ‘Tio Boonme’ é o mesmo da fotografia e por extensão o mesmo do cinema, para que algo possa existir novamente é preciso que antes ele encontre a luz como na clássica alusão da passagem espiritual de uma existência a outra. Após o choque das luzes vêm a escuridão, o recolhimento, a caverna ou sala escura, o cinema. Ritual de vida e morte ora silencioso, ora surpreendentemente musical como são o fim e os créditos finais de ‘Tio Boonme…’ . A tela preta ou mortalha fílmica não só encerra o filme, nesse caso ela também anestesia um cataclismo existencial de continuidade.

MATHEUS MARCO
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