Super 8

REC INDUSTRIAL

Há uma lógica em ‘Super 8 sobre tudo aquilo que é maquinal, reprodutivo ou funcional que acaba por reverberar nele todo, ainda mais se pensarmos que todo filme é inevitavelmente o registro inconsciente de sua realização, um making of intrínseco presente na criação de suas ‘imagens oficiais’( termo que serve bem à essa narrativa em especial). Tal relação aparece tanto mais direta e brutalmente explícita ou então disfarçada, camuflada por metáforas mais ou menos aparentes em outros momentos. Essas idéias ou palavras-chave, dependendo da preferência, aparecem de diversas maneiras e o próprio surgimento do filme enquanto projeto cinematográfico vem de uma dessas razões. Todos voltam a ser crianças, mesmo na fábrica. Sonhos e trabalho são um só.

Partindo da idéia de unir duas histórias diferentes: uma sobre um grupo de adolescentes envolvidos na feitura de um filme de zumbi em Super 8 e outra a respeito da pesquisa e armazenamento de objetos e seres extraterrestres pelo governo norte-americano e seu eventual transporte por ferrovias através do país o filme então se realiza. Relação bastante apropriada entre o horror social pelo fenômeno zombie tão caro aos americanos e a seu criador George Romero, inclusive referenciado diretamente, e a outro sintoma enormemente presente no imaginário da nação não só estadunidense, mas mundial em relação a ela, que são as teorias conspiratórias e arquivos obscuros como mostra bem o efeito WikiLeaks nos últimos tempos.

Vontade ainda maior era a de resgatar um estilo de cinema ou no argumento mais apropriado a esse tipo de estrutura, a um modo ‘de contar histórias’. Estilo (se é que podemos chamá-lo assim) que longe de caracterizar um gênero servia enquanto entretenimento do tipo mais lúdico a um público juvenil dos anos 80, época em que a história se passa, por saudosismo e necessidade crível à utilização do suporte de filmagem em questão.

Eis que lá vem o logotipo da Amblin Entertainment e sabemos o terreno seguro em que estamos pisando. Acordo entre pais e filhos, realizadores e família, produtores, distribuidores e claro, exibidores. A indústria se movimenta a todo vapor, mesmo a custo de algumas vidas, todas elas destituídas cenicamente, com crescente aumento de técnica e áudio, além de planos cada vez mais curtos. Da Amblin vieram produtos como ‘E.T. – O Extraterreste’, ‘Gremlins’, ´Os Goonies’, ‘De Volta para o Futuro’, ‘Jurassic Park’ e ‘Guerra dos Mundos’ para citar alguns.

‘Super 8’ é o acordo tácito e muito bem realizado de uma engrenagem de reprodução nem um pouco nociva, pois alimenta assim como seus monstros e seu senso normativo de civilidade a própria cadeia voraz de outros títulos infelizmente menos favorecidos. Reprodução das cópias por todos os cantos do globo, dos conceitos e ciclos.

Para dar cabo ao projeto que se pretendia resgatar, de maneira funcional, o estímulo dos grandes espetáculos de aventura que formaram o imaginário fílmico de toda uma geração, o criador e responsável pela maioria desses filmes Steven Spielberg escolhe a dedo, como um Zeus da megalomania cinematográfica, J. J, Abrams, diretor de ‘Lost’, Missão: Impossível III, ‘Star Trek’ e produtor de ‘Cloverfield – Monstro’. Novamente mais uma junção estava deliberadamente bem articulada. Era só apertar o botão e fazer tudo funcionar.

Curioso como ‘Super 8’ reflete exatamente isso, a pulsão maquinal que pode ser tanto destruidora como revitalizante. Não é a toa que a mãe do menino Joe Lamb (Joel Courtney) acabe morrendo drasticamente dentro de uma fábrica ou então que tudo aquilo que venha a se relacionar com o filme envolva direta ou indiretamente esse fenômeno pelo industrial. Desde a motivação de sua realização pela dupla Spielberg/Abrams até o próprio preenchimento de sua narrativa.

O botão vermelho que fará tudo funcionar: a câmera super 8 dos meninos no filme dentro do filme, a artilharia pesada dos militares avançando sobre tudo e todos, a freqüência de rádio utilizada secretamente, as películas governamentais visualizadas, a série de objetos eletrônicos e mecânicos que desaparecem para reaparecer no grande clímax das aparelhagens, o próprio princípio e fim da misteriosa criatura guardada em segredo não só pelos personagens como pelos próprios realizadores.

Criatura esta que à maneira de um King Kong mais uma vez reproduzido pela linha de montagem do cinema passará pelo ritual esperado dos filmes PG-13 ao ser transformado dentro de um esperado estímulo maniqueísta que futuramente irá humanizá-lo. Passada a tensão inicial e o divertimento das crianças acabar se transformando em divertimento dos adultos, tudo voltará após a comoção final a um estágio de controle. A regra dos filmes-catástrofe é sua proposta em causar destruição, impacto e dor (a morte como a da mãe, enchentes, hecatombes, explosões ou mesmo um elemento de todo tipo como um monstro ou fera) para depois restabelecer a tranqüilidade quando todos estiverem novamente unidos.

Aquele que aperta o botão primeiro e individualmente faz os aparatos se movimentarem só resistirá dentro de uma coletividade. A criatura também faz parte desse mundo e dessa indústria. Como mostra bem Luiz Nazário em seu livro ‘Da Natureza dos Monstros’, a sua morte ou destruição categórica entendida enquanto triunfo e soberania do homem no passado evoluiu com o tempo para uma forma do trabalho sobre o que antes era um mal a ser expurgado: “Hoje o homem não mata mais o monstro, ele trabalha. É uma forma de lutar contra a natureza, fonte maior de todos os medos”. ‘Super 8’ numa valiosa fórmula de Spielberg toca a monstruosidade com uma varinha de condão fazendo com que ele passe pela mutação infantil da escuridão do quarto que se transforma em claridade. Cineasta pai, moralista ou não, como todos os pais. As histórias que contamos para dormir e entreter. Se há algum susto ou medo ele é apenas porque ainda não conhecemos a sombra de verdade ou pintamos esse horror pior do que ele é. Um estrondo vale mais do que uma imagem.

A sala de cinema é o espaço da aglomeração prevista, da imaginação e da vontade de consumir aventura e de sermos consumidos por ela. Em espaços cada vez maiores os monstros e a família retornarão a cada estação para serem novamente eliminados, destituídos ou reenviados aonde quer que a ideologia do discurso possa planejar. O coletivo triunfa, pois a indústria continuará a se movimentar a bel prazer de nossas expectativas. As luzes da sala de cinema se acendem, as do estúdio também. Hora de acordar, estamos gravando.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação