Simon Werner Desapareceu

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O CINEMA COMO VONTADE (D)E REPRESENTAÇÃO.

Não é a toa que em determinado momento do filme ‘Simon Werner Desapareceu’ (Simon Werner a Disparu…), de Fabrice Gobert a personagem Alice Cartier (Ana Girardot), la belle fille de la classe, cita o filósofo alemão Arthur Schopenhauer e mais especificamente sua obra ‘O Mundo como Vontade e Representação’ (Die Welt als Wille und Vorstellung). Talvez seja a grande deixa, explícita ou não, da chave na qual o filme irá trabalhar, resumindo assim claramente suas intenções. Schopenhauer abre sua principal obra filosófica da seguinte forma: “O mundo é a minha representação”. E é exatamente isso que Gobert por tabela irá nos dizer, ou mostrar, ironicamente ao final de seu filme.

Exibido dentro da Un Certain Regard do Festival de Cannes do ano passado e agora nos cinemas nacionais dentro do Festival Varilux de Cinema Francês, ‘Simon Werner Desapareceu’ é nada mais que um arcabouço sobre o poder de construção do cinema ou para o público médio uma inteligente brincadeira sobre a frustração de uma expectativa.

O filme abre de maneira expressiva ao som de ‘Love Like Blood’, de Killing Joke enquanto uma jovem (Alice) caminha de maneira apressada por uma rua deserta durante a noite. A montagem da música, com os planos da caminhada e os entre cortes das cartelas iniciais já desenvolve uma sensação climática por enquanto difícil de definir, mas que claramente inspira juventude e obscuridade. É a primeira e mais sutil de uma série de artimanhas que irão se seguir durante o filme em favor de uma criação de expectativa. A partir desses primeiros minutos já podemos prever qual o caminho escolhido pela instância narrativa, principalmente após Alice chegar a uma residência na qual está acontecendo uma festa adolescente com, claro, muita bebida e música alta.

Os clichês estarão todos lá do início ao fim e fazem parte da grande manipulação ao qual o filme se propõe discretamente. É nesta breve seqüência inicial da festa, que será retomada algumas vezes ao longo da projeção sob outros pontos de vista, que chegaremos ao primeiro rompimento da narrativa.

Em determinado momento da cena um casal sai da casa sob o pretexto masculino de ficarem mais próximos enquanto a menina deseja apenas respirar um pouco de ar puro. Os dois caminham para fora e acabam entrando numa floresta que circunda a região do bairro e do colégio onde todos aqueles jovens estudam. O final deste primeiro movimento do filme sintetiza bem o modo de captura do olhar que vai direção ao espectador. Gobert sabe muito bem como a imagem floresta-escura-casal-jovem pode inspirar a imaginação referencial do público e naturalmente não é a toa como o filme em todas as idas e vindas nesta locação sempre irá remeter a uma certa evocação de ‘Sexta-Feira 13’ (Friday the 13th), por exemplo. Criada o cenário previsto, não seremos nos satisfazer como o esperado: não haverá beijo, não haverá sexo e muito menos um assassino mascarado. Tudo o que era ‘principal’ já foi, já era. O evento já aconteceu, não há mais nada, além da banalidade de seu acontecimento como iremos descobrir posteriormente. Assim o filme em seus minutos iniciais frustra igualmente seus personagens e seus espectadores. E o ‘pior’ de tudo, isso não é necessariamente seu problema ou falha.

A inteligência de ‘Simon Werner Desapareceu’ é exatamente a crueldade com que ele promete e engana em tudo o que cria e constrói. É como se houvesse um sorriso satisfeito em demonstrar como estamos todos sujeitos a criar uma realidade que só existe duplamente de maneira interna, primeiro em nossa pessoal suposição e idealização mental e segundo dentro de uma estrutura privilegiada como a cinematográfica na qual a visão parcial de algo acaba por incitar naturalmente o preenchimento com outras imagens ausentes, ou seja, a todo visual e explicação que falta à significação desta maior unidade. O espectador do filme é como o personagem de James Stewart em ‘Janela Indiscreta’ (Rear Window) que dentro de uma distância pré-estabelecida só pode observar o que acontece, sem interferir ativamente e que a partir daí acaba tendo a sua capacidade imaginativa controlada por uma atividade independente de seu controle.

Utilizando-se de uma estrutura fragmentada e de retorno que poderia nos remeter a diversos filmes, mas claramente faz reverberar ‘Elefante’ (Elephant), de Gus Van Sant por vários motivos que vão do ambiente colegial que engloba num só pacote os corpos e rostos da juventude com o espaço escolar; a geografia de Yvelines na França que lembra muito a Portland e o estado de Oregon onde normalmente se passam as histórias de Sant; as voltas temporais demarcadas pelos nomes dos personagens na tela e finalmente um evento de caráter criminoso e violento por trás deste universo. Essa aproximação óbvia com o filme de Sant faz Gobert parecer ainda mais audacioso com este que é seu primeiro longa-metragem ao apresentá-lo inicialmente em Cannes onde justamente ‘Elefante’ ganhou a Palma de Ouro em 2003. Feita esta esperada comparação é importante diferencia-los, pois ao contrário do filme americano e mesmo do canadense ‘Polytechnique’, de Denis Villeneuve que também trata de assunto muito parecido, ‘Simon Werner Desapareceu’ não pretende exatamente reconstruir um evento trágico procurando dar conta da complexidade dos vetores que o constituíram. Ao contrário, ele precisa ironicamente num primeiro momento desta suspensão de descrença própria do cinema para demonstrar o quão pouco complexo é o evento que escolheu apresentar.

Após a descoberta do corpo na floresta que ainda não sabemos a quem pertence, apesar da óbvia suspeita imaginada, iremos voltar dez dias na cronologia da história acompanhando com maior proximidade a semana que antecedeu a festa, primeiro a partir do ponto de vista de Jérémie Legrand (Jules Pélissier), jogador de time da escola que se acidenta neste meio tempo da narrativa e dono da casa na qual a festa acontece; depois de Alice, então namorada de Simon. Depois o filme irá se deter em Jean-Baptiste Rabier (Arthur Mazet), mostrado aparentemente como um garoto introspectivo, filho do professor de física e finalmente acompanharemos tudo sob o ponto de vista do tal Simon Werner (Laurent Delbecque). Todos esses blocos narrativos são preenchidos por outros personagens satélites, amigos e outros alunos da instituição, como Clara (Audrey Bastien), melhor amiga de Alice e Laetitia ‘Punky Brewster’ (Selma El Mouissi), além de outros alunos.

A cada retorno acompanharemos uma mesma cena já mostrada com um novo enfoque e enquadramento, descobrindo novas associações narrativas e visuais e preenchendo possíveis elipses que acabam consequentemente destituindo cada vez mais algumas expectativas e suspeitas. Na progressão dita realista ou na chamada vida real as coisas simplesmente acontecem, mesmo que o encadeamento de causa e conseqüência nos fuja às vezes. Nem todos os acontecimentos são espetaculares, conspiratórios ou fantásticos. O que parecia misterioso, escondido e negado por parte da direção na verdade se mostra muito mais o funcionamento ‘real’ dos eventos cotidianos nos quais evidentemente nunca temos um controle total daquilo que o antecedeu e formou, escapando de nós a totalidade de uma compreensão absoluta.

Por um lado parece lógico e óbvio que a onipresença sempre nos foge naquilo que julgamos ser nossa realidade, porém dentro de um espaço a priori de controle, encanto e manipulação tudo nos parece permitido e natural. E mesmo que de fato isso seja verdade, Fabrice Gobert mostra sem culpa alguma como somos facilmente manipuláveis e suscetíveis a fantasias em nossas intenções, principalmente dentro da situação de uma sala de cinema onde qualquer sombra se torna facilmente um monstro.

Voltando a Schopenhauer, para ele o mundo é por um lado representação e por outra vontade, nada mais do que aquilo que estamos a todo o tempo objetiva e subjetivamente fazendo dentro de um dispositivo ilusório e deliberadamente projetado; o mundo é puro fenômeno.

Dessa forma ‘Simon Werner Desapareceu’ infelizmente corre o sério risco de não criar empatia com ninguém. Não terá encontrado seu público médio, frustrado por uma promessa seguida ainda de uma negação da vontade e descontentamento, nem mesmo encontrará aquele acostumado com filmes artísticos e outros maneirismos por sua esperteza arisca e seu anticlímax de linguagem. É como um pretendente que apesar de todo charme inicial posteriormente irá mostrar a constatação de uma normalidade, ou pior ainda, de uma banalidade, no sentido menos pejorativo possível.

Após toda a conquista o espectador receberá apenas uma piscadela fria, pois o filme não pretende humor ou safadeza. As piadas são inexistentes ou falhas, as fantasias nunca se realizam tanto de um lado quanto de outro da tela, ou são meros boatos ou é apenas sonho. O cinema reina. A catarse desapareceu.

By Matheus Marco.
matheusmarco@brrun.com

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