Shame

Shame

Física do Estado Sólido

 

Antes de qualquer psicologismo moralizante ou machismo obcecado, ‘Shame’, de Steve McQueen nos coloca diante de um filme rigorosamente físico. A rigidez, inclusive literal, da palavra se coloca tanto em termos superficialmente reconhecidos a partir da lógica corporal (e humana) como também de uma correlação conceitual da física enquanto ramo da ciência.

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A ‘física da matéria condensada’ é um ramo dentro da física cujo objeto de investigação engloba tanto o da física do estado sólido como também os chamados sólidos amorfos e líquidos, ou seja, trata das propriedades físicas de qualquer matéria. ‘Shame’, apesar de seu título, pouco se coloca profundamente diante de uma vergonha ou mesmo de uma culpa mentalizada em excesso, o que não signifique que não se entregue verdadeiramente a questionamentos intensos no campo psicológico de seu personagem. Porém, acima do cérebro, existe um corpo que, independente de ser guiado por seus estímulos mentais, reage sensorialmente a outros objetos no espaço: este privilegiadamente um grande quadrilátero, linhas, retas e prismas envidraçados da metrópole, “New York, New York”.

O filme de McQueen nada mais é em sua essência que um frio estudo sobre o acúmulo, a fabricação e a dispersão do corpo sexual contemporâneo, imerso no individualismo capitalista de suas obsessões e imagens, de seu controle sobre si e sobre o outro. O que assistimos é este gradual vitrinismo de uma geometria masculina sendo preenchida e esvaziada sucessivamente, repetidamente. Do sólido compacto, a forma espectral em músculos e pele, arestas e vértices enrijecidos de pulsão até chegarmos à passagem da matéria, o líquido inevitável, esperma compulsório do desejo. Fases térmicas do envoltório analisado, mudanças de temperatura, ambientes frios externos, ruas noturnas, suor e respiração acelerada, grande sólido fluido.

 

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Na forma de um condutor de prazer inesgotável, Brandon Sullivan (Michael Fassbender) automatiza regularmente suas ações, catalisa seu olhar, sua mão e seu membro numa cotidiana performance compulsiva, ritmada. Não é a toa que os primeiros minutos do filme já respondem brilhantemente a esta constatação: o plano inicial do corpo nu levemente coberto pelo lençol de cama acompanhado da mecânica sonora do relógio ao fundo que transformando gradativamente na atmosférica trilha sonora de Harry Escott sistematiza ao mesmo tempo a cadência calculada de sua busca inesgotável por uma satisfação nunca plenamente realizada e a sobriedade pesada de sua reiteração extenuante quase beirando o horror e a tragédia (trilha esta utilizada no mais recente desfile masculino da Jil Sander).

Diferente da sociopatia de um Patrick Bateman de ‘Psicopata Americano’, Brandon poderia facilmente recair à figura assimilável de um mero ninfomaníaco. Ao contrário disso, seu perfil é perturbador exatamente por ser próximo demais, guardando a peculiar situação yuppie nova-iorquina específica e deliberadamente utilizada na contextualização de seu perfil, de todos nós ou, pelo menos, potencialmente próxima a todos nós.

 

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É justamente por isso que o drama de Brandon não se torna verdadeiramente sua obsessão sexual, compulsória por todo tipo de depravação virtual ou real do corpo e de seu prazer, ou ainda sua inadequação ao sistema normativo das relações estáveis e duráveis, nem mesmo o conflito limite com sua irmã Sissy (Carey Mulligan), mas sim o simples fato dele estar ao mesmo tempo perto de todos a sua volta (e consequentemente de nós, espectadores, mas antes de tudo também serem humanos) e solitário, distante de todos (e novamente de nós).

O que perturba em ‘Shame’ é esta gélida constatação de uma individualidade coletiva, no caso relacionada ao sexo, na qual todos estamos mesmo que em silêncio, escondidos por trás de um computador, uma webcam ou pessoalmente atrás ou a frente, mas nunca no meio, nunca presentes ou responsáveis pelo parceiro. Uma instintiva pulsão pornográfica onde pouco interessa o afeto ou o nome, a troca será sempre uma imagem, uma mensagem ou algumas horas de entretenimento acumulado exaustivamente até seu próprio esvaziamento.

Este não compromisso ou pertencimento se mostra bastante explícito num diálogo noturno após um jantar com uma amiga, enquanto voltam caminhando até um ponto do metrô. Numa conversa informal o personagem afirma a uma amiga sua preferência idílica a pertencer sempre ao tempo passado ou mesmo a um tempo futuro, mas nunca estar verdadeiramente situado num momento presente, atual. Escapismo de uma responsabilidade com o interlocutor, exceto quando este se torna literalmente aquele que recebe a ação.

Dentro deste aquário organizado, vide o apartamento de Brandon e a própria decupagem do filme, calculados em sua arquitetura, suas linhas, formas, tons cromáticos, o que prevalece é uma repetição que se direciona somente a uma invisibilidade ou a uma distorção (o reflexo espelhado na avenida), refrações de um corpo falsamente observado, controlado, preenchido, destruído, esvaziado e finalmente abandonado.

 

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A masturbação repetitiva fabrica o gozo que será suspenso, o acúmulo de uma satisfação sempre individual, ameaçada pela proximidade de um afeto (a irmã que liga repetidas vezes e aparece repentinamente, a companheira do trabalho afetivamente interessada). Ambas não sobrevivem, cada uma a sua maneira, ao indivíduo controle de seu espaço solitário e ativo. A redoma exige a antítese da proximidade de uma distância. Para que possa haver a verdadeira penetração de todos os sentidos é preciso que haja o reconhecimento desta separação.

Em ‘Shame’, um corpo apenas desdobra-se em dois se ambos reconhecerem o acordo tácito desta disjunção. Não há tempo ou mesmo enquadramento possível e permitido para a existência de um casal, seja ele fraternal, amigável ou principalmente amoroso. E é ainda mais irônico e quase aterrorizante perceber como McQueen nos oferece uma série de planos relativamente longos sem qualquer corte com dois personagens em cena como, por exemplo, Brandon e Marianne (Nicole Beharie) no restaurante ou ele e Sissy assistindo televisão.

Não há possibilidade de um contracampo dentro da estrutura do filme, aos seus personagens é sempre negada esta reversibilidade ideal da troca, se ela existe será sempre dentro de um mesmo enquadramento sem possibilidade da ida e da vinda. A alternância das potências individuais contracenadas ocorre apenas no nível de uma sofrida acumulação dos personagens obrigados a dividirem um mesmo tempo e um mesmo espaço da cena, a única possibilidade de corresponder um ao outro é estando dentro de um estado de fusão com o corpo alheio.

Incompatibilidade de respiro que não seja gemido ou choro, impossibilidade de encontros possíveis a não ser aqueles mediados pela distância reconhecida, efêmera e racionalmente controlada; com a clara (transparência, vidro) intenção de seu propósito e resultado, como bem mostra a seqüência em que o personagem adentra num clube gay apenas para suprir sua necessidade física momentânea e novamente não-sentimental pelo outro ou quando, incapaz de começar uma relação sexual através de um envolvimento pessoal, ele recorre a uma prostituta e assim consegue transar efetivamente.

 

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O que prevalece é a máxima do sexo que prove a necessidade de sermos dois, objetos distintos em períodos de interação, mas jamais um duplo ou conjunto permanente. O entrelaçamento a médio e longo prazo torna-se insustentável, enfraquecido pela improvável capacidade de aprofundar vínculos ou sustentar a constante presença daquele que passa a dividir o ego primordial da sexualidade individual.

As relações se perdem pelas esquinas, se desligam nos monitores ou se cortam nas linhas de trem ou nos banheiros. Não há espaço para réplica quando o que existe é apenas o curto circuito de um prazer partícula, um conjunto que sempre irá começar e terminar centrado no meu corpo. A masturbação que exaustivamente intensifica a produção orgânica de uma matéria única, potente, concentrada e centralizadora do desejo absoluto.

Aqui serve uma definição de Deleuze para a análise do quadro cinematográfico: “O enquadramento é a arte de escolher as partes de todos os tipos que entram num conjunto. Tal conjunto é um sistema fechado, relativa e artificialmente fechado. O sistema fechado determinado pelo quadro pode ser considerado em relação aos dados que ele comunica aos espectadores: ele é informático, e saturado ou rarefeito. Considerado em si mesmo e como limitação, é geométrico ou físico-dinâmico. É um sistema ótico, quando o consideramos em relação ao ponto de vista, ao ângulo de enquadramento: então ele é pragmaticamente justificado, ou exige uma justificação mais elevada. Enfim, determina um extracampo, seja sob a forma de um conjunto mais vasto que o prolonga, seja sob a forma de um todo que o integra.”.

Em ‘Shame’ não há extracampo que não seja aquele referencial ao próprio personagem, inflado e lustrado pela sua mesma ressonância. Assistimos, portanto a um gradual orgasmo sempre suspenso, postergado e doloroso de uma mise en scène insípida e viciada pela sua própria frieza.

Não há vergonha maior do que aquela que não sabe a razão de sua própria existência.

 

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

 

Fotos: Divulgação