Premonição 5

“I close my eyes
Only for a moment
And the moment’s gone
All my dreams
Pass before my eyes, a curiosity
Dust in the wind
All they are is dust in the wind”
‘Dust in the Wind’, Kansas

TANATOLOGIA DOS FUNNY GAMES

Mais do que um filme de horror ou uma improvável e irônica comédia de gosto duvidoso ‘Premonição 5’, de Steven Quale encerra a série iniciada em 2000 por James Wong refletindo um curioso estado do espectador, cada vez mais excitado pelas pirotecnias da destruição do corpo visual (ainda mais numa exibição em IMAX 3D como foi o meu caso).

As ‘brincadeiras’ e artimanhas para remodelar os limites físicos dos seres que pairam sobre a tela sempre existiram. Logo nos primeiros anos do surgimento do cinema Georges Méliès através de suas trucagens já mostrava o interesse do realizador e mais ainda da platéia em observar toda a diversão contida no procedimento de tirar o corpo de seu estado original e transforma-lo em outra coisa, sublima-lo, inverte-lo, duplica-lo; destruí-lo.

Os tais serem que antes pairavam sobre passaram então a se tornarem cada vez mais concretos passada a admiração pela uma fantasmagoria do nascimento chegando até mesmo pelos avanços técnicos a se aproximarem mais ainda da semelhança em cor, textura, dimensões aos seus semelhantes externos à tela. Aqueles que pairavam se internalizaram cruelmente durante décadas e ainda o são, porém com a nova ascensão da tecnologia 3D estes corpos passam a dividir uma dupla permanência: ao mesmo tempo serão consumidos pelos desígnios da diegese, mas também terão a capacidade de flertarem de maneira quase aloprada com o ambiente exterior nos exageros dos seus últimos segundos de vida. ‘Premonição 5’ em 3D é o próprio filme em vias de falecimento precisando demonstrar o tempo todo seu efeito de êmese post-mortem.

É curioso pensar no dispositivo de ameaça e aniquilação que existe nos filmes de horror, não importa qual sua natureza ou o tempo histórico que tenham sido feitos, mesmo que esta relação seja sempre muito pontual em seus reflexos e feitura. Há sempre um estágio inicial de tranqüilidade e normalidade que bem a moda aristotélica precisará ser quebrado para depois ser (talvez) restituído.

No caso de ‘Premonição 5’ e em todos seus anteriores o pandemônio instaurado sempre foge às reações de terceiros porque mais do que tudo fazem parte de um aparato realista de situações. Não existem máscaras ou fantasias para expurgar os desejos de moralista como costuma acontecer, é tudo parte de um grande jogo de fatalidades. O choque das situações ‘globais’ como as esperadas tragédias do começo do filme aos eventos particulares que irão se suceder a cada personagem nunca abalam socialmente o entorno da narrativa, pois tudo acontece como se sem explicação, apenas acontece, infelizmente, diriam a maioria das pessoas. Assim tudo pode acontecer com a mais radical naturalidade, sem culpa ou vergonha.

Outro interessante fator a ser percebido e que no surgimento principalmente na década de oitenta dos filmes de serial killer se tornou um sintoma do numérico e do descartável é em como os personagens ou vítimas, não importa seu grau de relevância, tempo ou importância dramática jamais conseguem criar a empatia mínima necessária que vá a preencher qualquer vínculo emocional com o espectador, salvo um caso ou outro como a Laurie Strode feita por Jamie Lee Curtis em ‘Halloween’ ou a Sidney Prescott de Neve Campbell em ‘Pânico’.

A tendência é sempre a de ignorar preocupação com aqueles semelhantes que estejam representados em situações de perigo, seja por ignorar tal necessidade (deliberadamente) ou por esquecimento (inconsciente ou incitado). O que prevalece é um senso de substituição incansável respondendo em número e grau à fúria do antagonista e a vontade pela reprodução inesgotável de um body count sedutor e estimulante.

Não existe dentro desses filmes uma funcionalidade exterior e talvez por isso haja na história do cinema grandes exemplos que reconheçam justamente a artificialidade deste terreno e assim se aproveitam deste ‘local privilegiado’ para criarem obras primas como fez Dario Argento em filmes como ‘Suspiria’ e Phemonema’ e Nobuhiko Ohbayashi em ‘Hausu’ ou ainda numa outra chave William Castle em ‘House on Haunted Hill e ‘Cat People’, de Jacques Tourneur, nos quais a lógica interna responde a toda farsa ‘realista’ das ações e desdobramentos. Aliás, o caso de Torneaur é ainda mais antagônico ao de ‘Premonição’ pela sutileza com que ele consegue apresentar o horrível justamente pela proibição maléfica de sua visão, os planos que por jamais serem mostrados acabam atingindo o nível do insuportável.

O funcional é apenas a engrenagem masoquista pela perseguição absoluta e eterna, o que faz com que ‘Premonição’ seja o reflexo mais absoluto deste procedimento em criar e destruir o boneco por serem filmes em que a certeza pela morte impera, sendo inclusive seu leimotiv, sua única certeza e atrativo. Dessa forma é curioso imaginar ainda mais a impossibilidade por qualquer empatia por esses personagens que já ‘nascem’ mortos ou sarcasticamente sempre morrem duas vezes em cada filme da série.

Em todos eles a fórmula é sempre a mesma que vai do desastre ao acidente, em todos eles fatalidades das mais variadas espécies e intensidades. A já conhecida estrutura dos filmes é a da breve apresentação dos personagens com suas pequenas particularidades ou características de diferenciação dos clichês de aparência e comportamento para que em seguida eles estejam condicionados em algum evento catastrófico como a explosão de um avião, um engavetamento numa auto-estrada, uma montanha russa descarrilada, uma pista de automobilismo em vias do descontrole ou então o desmoronamento de uma enorme ponte em cima de um rio no caso deste último filme que dizem ser num caso que aconteceu na Tacoma Narrows Bridge e é a seqüência inicial mais longa da série durante 4 minutos e 44 segundos.

Neste evento sempre coletivo e de proporções cada vez mais gráficas e exageradas inevitavelmente (quase) todos os personagens acabam morrendo sendo o último deles sempre o protagonista do filme, até hoje foram três masculinos e dois femininos. No caso de ‘Premonição 5’ ele é Sam (Nicholas D´Agosto) que visualiza a tragédia iminente momentos antes de acontecer na ponte deixando o ônibus em que ele a sua até então ex namorada Molly (Emma Bell) deixem o local levando consigo outros personagens que acabarão por se salvar momentaneamente até serem perseguidos nos próximos dias pelo que seria a Morte na mesma ordem em que teria acontecido no acidente original.

Daí em diante o esquema é a previsível seqüência de mortes agora individuais em requintes cada vez mais impressionantes que por isso mesmo acabam por causar o inevitável riso como no caso do improvável acidente envolvendo ginástica olímpica. O interessante é perceber como a direção consegue brincar friamente com essas cenas de morte, indicando pistas falsas sobre o que aparentemente irá acontecer com determinado personagem, fazendo com que todo espaço público ou privado possua um perigo em potencial em cada metro quadrado, como os próprios créditos iniciais fazendo com que qualquer loja da Tok & Stok seja o espaço perfeito para uma carnificina espetacular.

Se o riso acontece sem o menor constrangimento é porque não há mais pessoas, mas títeres infelizes lançados literalmente de uma ponta e outra para a diversão e catarse, não muito diferente dos espetáculos de horror e morte no Coliseu romano em outras épocas. Óculos para ver mais e melhor, poder inclusive tocar falsamente os batimentos de um coração ou mesmo sentir o frescor aproximado de uma arma ou ferramenta lançada sobre o ávido público.

O diferencial existente em ‘Premonição 5’ é na inclusão de uma moralidade no lugar onde ela ainda faltava fazendo com que o filme não resistisse em ceder a este natural procedimento dos filmes de horror e/ou catástrofe, especialmente os norte americanos. Se de ‘Tubarão’, de Spielberg ao já citado ‘Pânico’, de Wes Craven o sexo (ou a idéia de) é sempre atacado enquanto castração absoluta do corpo e do casal afim de uma civilidade social dos costumes encarnada num ser monstruoso, aqui a moral aparece deslocada duas vezes, primeiro por estar invisível e discreta numa entidade onipresente e por isso mesmo é ainda mais terrível (enquanto crueldade) em sua natureza normativa e por agora recair numa opção individual pela aniquilação do outro.

Se os filmes de horror como já apontei antes sempre refletem brilhantemente o contexto histórico e social no qual foram realizados, ‘Premonição 5’ ilustra bem o individualismo irracional e a competitividade desenfreada pelo lugar do outro. Já que o filme ainda terá tempo para rir de si e dos outros até o seu final, essa tentativa de burlar ou enganar a Morte através da troca de tempo de vida por outra pessoa não levará muito longe.

A ironia presente em personagens enganados, perdidos e abobalhados numa narrativa inevitavelmente brincalhona e demoníaca. ‘Premonição 5’ aparentemente encerra a série de filmes fechando um circuito naquela que é a sacada de seu roteiro a sua última grande piada, a constatação de ser um prequel.

Como em todos os filmes, de gênero ou não, existe uma timeline demarcada para o começo e o fim, no fundo os personagens nunca sobrevivem ou para os inspirados sempre podem sobreviver. O tempo de permanência do corpo na tela é sempre o tempo permitido pelas instancias maiores da técnica e da arte. É o privilégio por falar e se mover previsto no roteiro, o enquadramento proporcionado pela decupagem ou a duração concedida pela montagem, talvez a maior ceifadora de todas através do seu poder do corte e das elipses.

‘Premonição 5’ assim demonstra a própria trajetória efêmera do corpo cinematográfico abandonado a todas as previsões e vontades de uma superioridade dominadora e sádica. Se Luc Moullet disse que “a moral é uma questão de travelling” ao que Godard inverteu a “o travelling é uma questão de moral”, os filmes de horror em qualquer espécie e categoria são o auge de uma moralidade cadavérica.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação