Pina

“Eu sou o espaço onde estou.”

Gaston Bachelard

Opus Alquímico Anatômico


Um filme como ‘Pina’ revela à crítica, mais até do que aos espectadores, a dificuldade em dar conta através de palavras ou mesmo de impressões orais a reação objetiva ou subjetiva diante de uma obra feita para os sentidos. Longe de experimentações cognitivas ou abstracionismos o filme de Win Wenders se coloca entre a música e o corpo, elementos que intrínsecos a qualquer cinema se encontram aqui entre a engenharia sensorial de Walter Ruttmann e a ciência artística e física dos experimentos fílmicos de Muybridge e Marey.

O local onde ‘Pina’ se insere é instável como seus bailarinos diante de qualquer encenação, pois o próprio filme existe num pertencimento oblíquo a sua própria natureza cinematográfica. O registro de Wenders ultrapassa as dificuldades iniciais do teatro e da própria dança enquanto mero registro para transformá-los em cinema, porém um caso específico de cinema que procura em si mesmo enaltecer uma trajetória coerente e fascinante de uma das maiores artistas da arte da dança.

Dar conta da obra de Pina Bausch é também dar conta de uma realização grande demais para uma ficção, grande mesmo para um documentário, ineficaz e simplista ao mero registro, impossível a uma câmera desejante da apropriação física. Se há música e dança não o são enquanto fabulações espetaculares, mesmo que haja espetáculo e encanto o tempo todo. Não estamos na dicção ritmada dos filmes musicais, portanto a articulação deve se tornar outra. Wender abdica naturalmente da linguagem cinematográfica enquanto mecanismos e joguetes para se utilizar da linguagem de Pina.

Como é apontado mais de uma vez durante o filme a coreógrafa e bailarina desenvolveu para si e para os outros um estilo particular e preciso em seus gestos e movimentos, uma articulação tão pessoal a ponto de desmontar outros recursos de compreensão que não sejam puramente as emoções. No fim das contas o diretor faz uma inteligente e justa troca entre as linguagens, já que o cinema em seus desdobramentos modernos mais ainda do que em suas origens de curiosidade e sonho sempre encontrou nas gratificações emotivas a sua permanência e legitimidade mais forte.

Se à direção coube um tratamento que foge aos mecanismos próprios dos filmes e mais ainda da montagem, à crítica torna-se ainda mais delicado o efeito de pensar uma obra que antes de mais nada é feita para ser sentida ou, melhor ainda, para ser dançada mesmo que na imobilidade de uma recepção nos formatos habituais.

O tratamento dado ao filme é do conhecimento natural de sua existência, independente de uma realização em tom de homenagem pela proximidade de poucos anos de sua morte. Aos espectadores é dado como certo o acordo de sabedoria sobre Pina Bausch e a eles será destituído o inventário biográfico de costume utilizado em filmes documentais ou não sobre grandes personagens reais referenciados. Informações serão dadas gradativamente em curtos depoimentos dos bailarinos da companhia em diferentes idiomas e sob diferentes aspectos do universo da coreógrafa, compartilhando ensinamentos ou procurando revelar ou descobrir de maneira simples e sincera o significado daquela entidade diante deles durante sua formação e amadurecimento.

A compreensão de um filme como esse necessita ainda mais do corpo do que do cérebro assim como seus bailarinos se utilizam da toda a estrutura biológica e maquinal na construção calculada de certas movimentações espaciais.

É por esta razão que a frase de Bachelard é tão representativa ao desenvolvimento dramático e sonoro, podendo ainda fazer mais sentido através de uma inversão de significado deslocando o espaço ao corpo, ou seja, mais do que uma existência a partir da espacialidade é a própria arquitetura real ou artificial que se curva ao corpo. Não são os bailarinos que precisam lutar contra ou a favor das planícies naturais ou simuladas, aos móveis e rochas, cadeiras e outros bailarinos. É o próprio ambiente que se personifica juntamente a eles, dinamizando as relações entre o local onde estou com aquilo que eu sou e vice versa.

Como na frase de Barbara Kruger sobre o corpo enquanto campo de batalha, ‘Pina’ nos mostra como na dança existe uma guerra particular de si com seus sentimentos. Suas apresentações, seus temas sempre giram e se deslocam a partir de elementos inerentes a qualquer ser humano como o amor, a solidão, o sofrimento e o regozijo por uma força efervescente.

São corpos que imersos e paralisados de repente surpreendem a imobilidade do olhar com sucessivos desmoronamentos, lânguidas construções e poses transformadas em impactos violentos e sublimes. São indivíduos solitários ou casais, mesmo pequenos grupos de pessoas como uma confraria de renovação interior.

Um filme no qual tudo vem de dentro para contaminar de admiração o redor como se o ar fosse uma grande rede invisível de partículas prontas para serem movimentadas. São os braços, pernas, pescoços e troncos que caminhando ou se contorcendo, se lançando ou caindo em outros corpos se desmembram para serem novamente erguidos, vigorosos em precisão e êxtase. Tudo o que há em volta apenas se modifica como peças de um dominó prestes a tombarem magicamente.

‘Pina’ foge às palavras para dar lugar aos fenômenos da expressão. Win Wenders faz com Pina Bausch o que Pina Bausch fazia com seus bailarinos ao os transformarem em tintas para pintar suas composições coreografadas. No filme de Wenders Pina é a grande aquarela musical e dançante, delicada e violenta, pronta para encher de glória um frame de silêncio. ‘Pina’ é uma tela expressionista pronta para a ressurreição.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação