Os Famosos e os Duendes da Morte


O PLANO DE IMANÊNCIA

O que é uma interioridade? Não é de hoje naturalmente que o cinema procura conhecer e reportar, e o faz cada vez mais, os mecanismos subjetivos de um personagem, mesmo de um estado físico ou psicológico. A óbvia constatação reforça ainda mais o caráter propício da imagem cinematográfica às construções visuais e sonoras dos tipos mais inspirados. A câmera se flexiona, metaforicamente ou não, a ponto de realmente torcer o mundo numa outra visão dele mesmo. Ela passa não mais a vê-lo de forma objetiva, mas vê a si mesmo, não enquanto metalinguagem ou reação ao próprio dispositivo e sim enquanto movimento interior. Isso se torna ainda mais evidente quando esse mundo só diz respeito a uma concepção particular, pessoal de mundo. Aquilo que vejo se torna rigorosamente a minha realidade, independente do mesmo registro a partir de um ponto de vista alheio, diferente.

Esse processo de diferenciação e particularidade do modo de ver o mundo e ser visto por ele acontece com todos, porém pode ser muito mais acentuado dentro de uma condição que vai de alterações psicológicas ou psíquicas, graus perceptivos alterados ou mesmo naquilo que se refere a específicos momentos da vida de cada um. Por exemplo, o modo como uma criança reage ao universo que a rodeia, com todas suas construções próprias, seus devaneios e preponderâncias imaginativas. Não muito diferente disso é o período da adolescência e mesmo o da juventude. O curto circuito da câmera que se interioriza passa a ser uma inescapável situação formal dentro deste modo de registro do sintoma subjetivo de um personagem num determinado momento de sua vida.

Em ‘Os Famosos e os Duendes da Morte’, estréia em longa metragem do cineasta Esmir Filho, jovem realizador de curtas metragens como o conhecido ‘Tapa na Pantera’ e o premiado ‘Alguma Coisa Assim’, o sentimento da captação interior ganha ares de enorme subjetividade e mesmo uma ambigüidade que cada vez parece mais desintegrada ou temida na produção de cinema de um modo geral. É como se houvesse um medo ou aversão a tudo aquilo que não pareça claro numa espécie de fobia a tudo que possa ser conotativo.

A partir de um livro de Ismael Caneppele, que também assina o roteiro do filme, Esmir cria um diálogo dinâmico entre literatura e cinema fazendo de cada um o desdobramento do outro. O livro aflorado de uma escrita voltada a essa essência interior do personagem ganha através do recurso audiovisual uma manifestação expressiva, tendo em mãos outros recursos de clareza, paradoxalmente num caso tão esfumaçado e opaco como esse.

A tendência ao registro da proximidade adolescente própria de Esmir em seus trabalhos anteriores encontra o terreno e corresponde a altura na obra de Caneppele. A interioridade de um personagem que se torna em maior ou menor grau a interioridade do próprio filme numa fusão visual e sonora do que é corpo e efeito de um ou de outro, passa a representar tudo o que concerne o antes e o depois, o interior e o exterior. E melhor do que isso é a relação estabelecida entre eles com o conceito da virtualidade. Podemos pensar ‘Os Famosos e os Duendes da Morte’ numa chave filosófica com aquilo que se chama de virtual.

O paralelo entre o virtual e o atual e sua distinção corresponderia à cisão mais fundamental do Tempo. Ou seja, estabelecendo uma relação de imanência do virtual com sua atualização, isto é, uma maneira de cristalização entre o virtual e o atual quando não haveria mais limite identificável entre os dois, teríamos a chamada imagem cristal, o cristal de tempo descoberto por Gilles Deleuze no cerne da criação cinematográfica: “É o presente que passa, que define o atual”, mas “é no virtual que o passado se conserva”. O apego a um outro tempo, deslocado, amorfo, descaracterizado e assombrado por outras configurações perceptivas aparece fortemente em no filme. Mais ainda porque este virtual não só aparece enquanto pensamento filosófico dentro de uma análise mais conceitual, mas também enquanto porção narrativa, recurso que permeia as atitudes do personagem.

O que é a interioridade senão uma troca entre um virtual e um atual ou mais ainda entre um virtual e um real, uma atualidade latente, forçosamente presa a outros tempos. O grande conflito de seu protagonista (Henrique Larré) é essa indefinição dos fluxos, dos tempos, dos sentimentos. Não por acaso a figura de uma ponte seja tão significativa dentro do filme, espaço de ligação, passagem, transformação. A ponte que muitos não conseguem atravessar fazendo com que o único desvio seja o do suicídio. Nietzsche já dizia que se olhamos muito para o abismo, ele nos devolve este olhar, o abismo também então nos olha. O garoto ou seu avatar Mr. Tambourine Man em certo momento comenta com seu melhor amigo sobre a força que parece atrair à queda sempre que se olha para baixo.

A conhecida situação de reconhecimento, afirmação própria da adolescência encontra agora uma geração literalmente virtualizada, povoada pela multiplicidade não mais, ou não só, dos conceitos de Deleuze, mas potencialmente representativa deles. Se o próximo século seria deleuziano como afirmou em séria brincadeira Foucault certa vez, ele realmente o é na proliferação de redes sociais, trocas e camadas de informação, conteúdo, imagens e mesmo existências. O Sr. Tambourine não encontra na pequena cidade no interior gaúcho a razão para existir, se isso ocorre é somente dentro – ou no caso fora – de um circuito virtual, não só pelo que a internet naturalmente proporciona enquanto virtualidade, mas na criação efetiva de outros mundos, outros perfis, outras imagens e por isso é tão importante às visualidades provocadas pelos vídeos postados em canais como youtube ou vimeo, os pensamentos poéticos publicados nos blogs ou as fotografias no flickr. Não são apenas o sintoma ou a reverberação produtiva do nosso tempo e sua infinita possibilidade de manifestação de vontades e potenciais artísticos, é também a caracterização atual de um tipo de virtualidade, que nesse caso é duplo.

De todo modo “estar perto não é físico” e sendo assim é interessante como Esmir filma seus personagens, ao mesmo tempo tão próximos do corpo e muitas vezes com tamanho distanciamento da carne, como se realmente fossem uma matéria a ponto do desaparecimento. É pensar nos diversos planos de Julian (Ismael  Caneppele) e Jingle Jangle (Tuanne Eggers) feitos num registro de imagem diferente de todo o restante do filme, como se fossem figuras fantasmas, corpos se esmaecendo, vagando num mundo paralelo, assombrados de puro spleen ou mesmo quando o protagonista numa determinada noite pega uma webcam e começa a passa-la sobre seu corpo nu enquanto se observa dentro dessa reprodução virtual de si.

Um narcisismo melancólico permeia todo o filme, principalmente nesta trinca de personagens que parecem sempre dançar uma valsa adormecida e individualizada mesmo quando acabam por se encontrar realmente. No fundo ‘Os Famosos e Os Duendes da Morte’ trata dessa incompletude ou indefinição dos espaços internos, nossas ambigüidades sentimentais, os desejos que vão da sexualidade ao deslocamento e pertencimento a algo. Um filme altamente subjetivo que destoa de quase toda, senão toda, produção nacional característica, seja pelo seu próprio registro objetivo de uma geografia pouco explorada em nosso cinema, como também por essa caracterização poética de um universo como o juvenil.

O blackout que antecede o final é talvez a maior conotação presente no filme, a triangulação irreversível e impossível. De repente os sentidos se perdem, a mente se apaga. O circuito adolescente, seu frenesi, hormônios e vontades sublimadas encontram finalmente sua vivência objetiva. Tamanha carga de energia concentrada só pode resultar neste apagamento. Quando acendemos de volta, uma maturidade pode despontar no horizonte. O fluxo pode continuar e então os personagens podem realmente avançar em direção a um novo plano, seja ele real, virtual ou mesmo cinematográfico.

É de longe a maior agressividade e antídoto a filmes adolescentes enfadonhos e pouco inspirados do tipo ‘As Melhores Coisas do Mundo’, de Laís Bodanzky, tanto no que se refere a forma como a conteúdo. O mérito do filme, e do próprio Esmir, é essa entrega e zelo por mergulhar com tamanho cuidado num universo tão caro a si mesmo e a sua geração. Mergulho este mais uma vez além dos próprios personagens, mas também no que se refere ao material original, roteiro e posteriormente direção num reflexo infinito de representação de si. O curto circuito entre imagem e imagem de mim mesmo extrapola a narrativa, contaminando tanto o realizador quanto o realizado. Novamente é a câmera que olha para dentro de si para encontrar não o próprio dispositivo, mas sim aquele por trás dela. Da mesma forma que seu personagem, é o cineasta então que se reconhece. Assim ‘Os Famosos e Os Duendes da Morta’ torna-se um cinema dos espelhos turvos, em foco doce e à meia luz dos computadores.

MATHEUS MARCO
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