O Artista

“O cinema sonoro inventou o silêncio.”

Robert Bresson ‘Notes sur le Cinématographe’, 1975

Mimetismo

Nada mais anacrônico do que em tempos de grande urgência de realidade, seja pelos dispositivos técnicos digitais ou pela falência de uma ficção cada vez mais nutrida de tramas com tendências documentais ou, em outra via, de espetáculos verborrágicos de cortes, explosões e terceiras dimensões um filme ‘mudo’ como ‘O Artista’ esteja reverberando ecos premiados pelas telas mundiais.

Talvez por restabelecer um vínculo de compreensão por aquilo que há de mais generalizado num filme desde sua origem, o reconhecimento de um mundo vinculado à nossa realidade. Nós vemos o trem em direção à estação, em nossas direções e acreditamos completamente em sua força e impacto. Mesmo que hoje não temamos a violência de sua frontalidade, ainda conseguimos acreditar, perante a diegese apresentada, em sua existência perante nosso olhos.

Curiosamente ‘O Artista’, visto em plena segunda década dos anos 2000 acaba por ao mesmo resgatar o sentido de confiança naquilo que vemos, nos reconhecemos, situações identificadas, personagens, o drama e a comédia de cada imagem, não importa a língua ou cultura a qual pertença. A ironia é que apesar disso estamos diante de uma realidade que não é a nossa, a década de 20, num registro em preto e branco, ou seja, apresentado com senão distanciamento, próprio de uma estética em todos os sentidos de sua linguagem, visual (e sonora) distantes do que julgamos identificáveis ao nosso mundo presente.

Existe simultaneamente a proximidade e conquista por um filme gracioso em seus trejeitos e pretensões, perspicaz em nos sensibilizar com sua delicadeza e esforço, mas também a distância que acentua a identificação completa. ‘O Artista’, ao mesmo tempo um filme tão perto e tão longe de nós, reverenciando seu passado através do pastiche, provocando seu presente pela memória ou por aquilo que deixamos olhar. Ou de ouvir.

Em um texto intitulado ‘Cinemetereologia’ a respeito de um filme de Jean Marie Straub e Daniele Huillet, Serge Daney fala a respeito da chance dada ao silêncio a partir do surgimento do cinema sonoro a partir do refinamento do trabalho de som direto presente no filme dos Straub, como se o áudio em seus filmes trouxesse as alucinações auditivas presente em filmes mudos fazendo com que o som devolvesse assim a sua ausência marcada paradoxalmente pela sua presença.

Ainda a respeito do filme do casal de cineastas Daney o relaciona com ‘Vento e Areia’, do sueco Victor Sjöström filmado em Hollywood em 1928. Neste filme a personagem de Lillian Gish entrava num estado de torpor e enlouquecimento por causa do vento. Apesar de o filme ser ‘mudo’, a presença visual dos seus elementos era tão agressiva aos sentidos que ele acabaria por provocar a tal alucinação auditiva já comentada.

É quando Daney revela a interessante idéia de que nunca houve propriamente um ‘cinema mudo’, mas sim um cinema surdo ao que se produzia no interior de cada espectador. Surdo também, talvez, porque o mundo sempre se fez ouvinte, mesmo o particular, pré nascimento ainda de olhos fechados à sua realidade, apenas ouvindo, nem que fosse a própria pulsação de sua vida.

Escutar primeiro para depois ver, árdua tarefa em nossa tendência megalomaníaca das telas que se proliferam por todos os espaços. Se ouvimos muito, ouvimos mal porque vemos em maior quantidade. ‘O Artista’ em sua alegoria exagerada daquilo que um dia foi os primórdios ou a infância do cinema faz com que acalmemos os ânimos e prestemos atenção cuidadosamente naquilo que vemos. Ironia de sua parte? Continuamos a apenas ver. O que nos resta é o acompanhamento sonoro, musical e extra diegético, se antes pelas apresentações orquestradas durante a projeção, posteriormente e ainda hoje em sua exibição assistidos pela trilha de Ludovic Bource.

Uma história de amor, conflituosa em seus meandros necessários como segue a cartilha reverenciada por aquilo que quer tanto emular, imitar ou destronar mesmo que sob o direito da homenagem. O cinema mudo que apaixonado por aquilo que viria a ser o cinema sonoro se resguarda e luta por sua permanência, homogeneidade e individualidade, a moral do orgulho presente no desaparecimento dos filmes feitos até então. O que resulta deste encontro transformador, ora cômico, ora dramático é o que viria a ser o filme musical como nos mostram as seqüências finais em referência clara a ‘O Picolino’, de Mark Sandrich.

Para isso o diretor Michel Hazanavicius recria um filme inclusive na janela de exibição em 1:33:1, original do cinema silencioso para mostrar a fantasia perdida dos filmes esquecidos, indiferentes a qualquer espectador, exceto cinéfilos, restauradores e acadêmicos da área. O resgate por um mundo ignorado pelas velocidades dos tempos modernos, aclamado pela crítica e por boa parte do público por parecer ser o antídoto necessário para a situação difusa da história do cinema pela qual estamos passando.

Um filme de flerte, entre seus personagens que se olham, encantam e se encantam, dos maneirismos e dos gracejos físicos. Flerte este que recai inegavelmente na platéia que o observa, impávida pela sua doçura, ignorando seus clichês e previsibilidades em favor da magia provocada pela natureza irreal ao nosso tempo, charmosa como uma peça de antiquário, porém nova, com o frescor de sua feitura. Não é uma mostra ou cineclube, é um artplex.

Nesse filme de flerte o renomado ator de filmes mudos George Valentin (Jean Dujardin) se vê envolto com o who´s that girl de Peppy Miller (Bérénice Bejo), de anônima a figurante, passando a coadjuvante até se tornar uma star (representada numa inteligente estratégia de roteiro através de sua ascensão nos créditos iniciais das produções) nos tais filmes sonoros que fariam a carreira do primeiro sucumbir ao ostracismo e ao literal silêncio.

Para que ‘O Artista’ conseguisse ser pleno em sua realização a Hazanavicius cabe a idéia de envolvê-lo na metalinguagem considerando que o diretor pudesse fazer um filme com a mesma estética, conceito e contexto histórico com uma trama diferente. Ao fazer de sua história um receptáculo do próprio cinema ele instaura ainda mais o desejo por seu efeito mágico do encantamento, aumentando o mistério saudosista.

E acima de tudo ‘O Artista’ não almeja qualquer cinema, mas aquele instaurado nos grandes estúdios, dos enormes galpões, do glamour das residências e maquinarias. Escondido sobre um anacronismo conceitual e formal pela sua imagem e linguagem, ele ainda é consciente de seu poder dentro da indústria cuja prova mais cabal é sua consagração legitimada pela Academia de Artes Cinematográficas com os prêmios artísticos mais importantes do Oscar.

Acima de tudo estamos diante de um filme de indústria, mesmo que não realizado dentro e por ela, visando-a. Sua herança e genética comprovada por sua linguagem demonstram as escolhas e costuras de sua estrutura. Ainda que considerado ousado (e de fato é) por sua realização nos dias atuais enquanto longa metragem, mesmo que em circuitos de festivais, como um filme particular, reforçado por direcionamentos que podem ser considerados formais.

Destes podemos citar a não utilização de diálogos, exceto por eventuais e raras cartelas com falas escritas, a imagem em preto e branco com suas variações monocromáticas emulando as trocas de rolo ou a natureza de seus enquadramentos mais centrais e estáticos ele ainda está em desacordo com outros procedimentos formais diferentes ou mais interessantes.

A essa reflexão bastaria lembrar-se de toda a avant garde européia dos anos 20 e 30 como, por exemplo, ‘Entr´acte’, de René Clair ou os filmes de Louis Delluc, Germaine Dulac, Marcel L´Herbier e Dimitri Kirsanov. Isso sem citar o trabalho feito pelos expressionistas alemães e o cinema soviético revolucionário e suas vigorosas montagens.

A ‘O Artista’ isso tudo não pertence ou interessa, pelo menos em universo e opções de linguagem e conceito. A esse riquíssimo potencial imagético existe felizmente o cineasta canadense Guy Maddin, realizador contemporâneo responsável por uma das filmografias mais interessantes das últimas décadas como é o caso dos filmes ‘The Saddest Music in the World’, ‘Dracula: Pages from a Virgin’s Diary’, ‘Brand Upon the Brain! A Remembrance in 12 Chapters’ e ‘My Winnipeg’. Maddin se utiliza de todo arsenal formal das grandes filmografias do cinema avant garde francês, do expressionismo e do cinema russo incorporando tais elementos a uma narrativa moderna, virulenta e impressionante, repleta de sensações e sentidos numa montagem exuberante.

Curiosamente contemporâneo a ‘O Artista’ temos o mais recente filme de Jean Luc Godard, ‘Filme Socialismo’, o ‘filme tudo’, pré e pós aquilo que o cinema (e seus espectadores) conseguem compreender, feito todo em digital com uma Archos 404, uma Canon 5D, uma Sansung NV24 HD e câmeras de celular. Se em ‘O Artista’ assistimos a um filme na janela que corresponderia ao quadrado 4:3, em ‘Filme Socialismo’ um personagem conversa com o outro: “Cinemascope?”, “16:9, meu tio.”. Mais do que isso o próximo filme de Godard aspira irônico e visionário o futuro: ‘Adieu to Language’ (Adeus à Linguagem).

Em sua pretensão delicada e consciente, ‘O Artista’ não pretende ser arrojado em construções complexas, pois seu lirismo é controlado em seu classicismo cinematográfico. Dele recebemos uma espécie de kitsch encantado pelo seu próprio nobre artifício, reduzido na beleza e na emoção de ser, por exemplo, em preto e branco, mudo, deslocado de seu tempo fazendo do pastiche a homenagem.

O que nos resta é a aparência, os pequenos lampejos criativos como a seqüência do braço de Peppy dentro do casaco de George dando a função de sua materialidade ao tocar seu próprio corpo ou a cena de sonho em que o ator se defronta com todos os sons possíveis, exceto o de sua própria voz. Nos demais momentos o que prevalece é um tique caricato em busca de dignidade, repleto de ingenuidade quando na verdade o cinema mudo não desejava sua própria caricatura.

No desespero de significar às vezes o fazemos em demasia, talvez porque assim nos seja mais seguro, amplo aos olhos e aos ouvidos. É por querer ser amado que o filme no fim consegue finalmente receber o amor de sua platéia, abdicando de idiossincrasias superiores, riscos e experimentos. A diferença e a constatação é que o filme de Hazanavicius não quer ser auteur, mas sim ser artist.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação