KABOOM

“Because if it’s not Love
Then it’s the bomb, the bomb, the bomb,
the bomb, the bomb, the bomb, the bomb
That will bring us together”

‘Ask’, The Smiths

APOCALIPSE POP REDUX

Poucos cineastas possuem tamanha compreensão de uma iconografia pop como o americano Gregg Araki. Desde o início de sua carreira dentro de um chamado Queer Cinema o diretor soube construir com enorme despretensão e frescor um universo juvenil agitado por individuais revoluções coloridas, vaidades rotativas e principalmente um senso de alegria e liberdade muito particular a uma geração do final do século XX. Certamente muito disso vem de seu trabalho como crítico musical na L.A. Weekly somado a sua formação em cinema pela USC School of Cinema-Television. Se comentei outrora como os filmes de Sofia Coppola de alguma forma pareciam amálgamas audiovisuais de tumblrs, os filmes de Araki trazem especialmente essa sensação de serem revistas sinestésicas na época dos Ipads. Se em Coppola existe a sensação de se estar numa edição de Casa Vogue, em Araki o terreno é uma MTV Avant Garde misturada a um exemplar da Têtu. E como dizia Marguerite Duras “Elle dit : regardez : la fin du monde. Tout le temps. À chaque seconde. Partout.”.

A urgência das histórias e personagens de Araki é sempre da ordem prazerosa ao mesmo tempo que de uma superação e de um aniquilamento: superação da própria adolescência pregressa, das transformações físicas e suas posteriores descobertas e vontades, das visões e vidências artísticas transformadas, dos relacionamentos e trocas afetivas, assim como o aniquilamento das barreiras e práticas antiquadas, de certas limitações sociais e pessoais, da própria consciência dos desejos sublimados. Superação e aniquilação do mundo.

No começo dos anos 90, período de grande ebulição criativa em sua produção, o diretor realizou a chamada ‘Teenage Apocalipse Trilogy’ composta pelos filmes ‘Totally F***ed Up’, ‘The Doom Generation’ e ‘Nowhere’. Tais obras são como crônicas juvenis envolvendo a diversidade sexual dos comportamentos, as aventuras e choques das expectativas, cirandas de sexo, drogas e música pop, figurativas de violência gráfica às vezes, simbolismo cultural, erotismo brilhante e feromônios cinematográficos. Seria como assistir a uma versão LGBT pós oitentista dos filmes de John Hughes ou a um episódio de Barrados no Baile sob efeito de alucinógenos.

Se naquela época Araki já vislumbrava uma degradação existencial eufórica e virulenta dos jovens e do mundo por conseqüência como um espectro futuro dessas gerações, ele agora ao final desta primeira década de novo século (e milênio) pôde encontrar a alquimia certa para o seu ‘filme fogos de artifício’: ‘Kaboom’.

Segundo o próprio diretor ele poderia ser visto como inusitado encontro de seus dois filmes anteriores: ‘Mysterious Skin’ e ‘Smiley Face’. Tal afirmação parece bastante plausível se pensarmos em como ‘Kaboom’ consegue fundir e elevar à enésima potência a facilidade de Araki de criar climas, atmosferas e sensações indo rapidamente de uma etérea e suave melancolia presente em ‘Mysterious Skin’ (evidentemente auxiliada pelo magnífico score de Robin Guthrie) ao abobalhado comportamento encontrado em ‘Smiley Face’. Ao juntar essas duas tendências de seus últimos filmes, Araki faz o trabalho de um físico tentando chocar moléculas bem autônomas cujo resultado poderia ser em grande parte arriscado e desastroso. Para sua sorte o efeito de tal ação resultou num dos filmes mais tresloucados e sinceros já realizados nos últimos anos. Assistir à ‘Kaboom’ é como entrar em uma montanha russa desgovernada, um parque de diversão que a todo o momento degringola, ameaça cair e assusta pelo descaramento com que dá sucessão às suas cenas.

SUSPENSION OF DISBELIEF

Não há realidade possível em ‘Kaboom’ senão sua própria fascinação por uma polução noturna, diurna, simultânea e eterna por sua própria reprodução do inverossímil. Não por acaso o filme já começa fazendo referência ao sonho do protagonista Smith (Thomas Dekker), um estudante de cinema gay com tendências bissexuais prestes a completar seus dezenove anos. Na iminência de uma transformação estranhamente arrebatadora em sua vida ele então recebe enquanto dorme a própria visualização do que será toda a narrativa que irá se seguir, imagens que recaem na incompreensão de uma lógica senão explicada pela alta tendência imaginativa das coisas, à colagem descontrolada de visões diárias reunidas, ou o efeito e utilização de outras substâncias, ao festim dos hormônios ou apenas a uma defecação cerebral como sua melhor amiga Stella (Halley Bennet) comenta em determinado momento. Ou seja, pode ser tudo, de um grande segredo estratosférico a um completo nonsense que não responde a nada, como é visto na primeira seqüência do filme.

Smith vive em um dormitório do campus de uma Universidade de Artes ao lado de outros personagens banhados a gelatinas de cor como a já citada melhor amiga lésbica e feminina Stella, enquanto divide quarto com Thor (Chris Zylka), um roommate surfista atlético e vaidoso, aparentemente acéfalo que atrai a atenção e desejo do rapaz ora levando garotas para transar no apartamento ou então fazendo ambíguas e típicas lutas com seu amigo hétero Rex (Andy Fischer-Price). Somam se a eles London (Juno Temple), uma menina com quem Smith se encontra acidentalmente numa festa e vem a se relacionar sexualmente depois, Lorelei (Roxane Mesquida), namorada e parceira sexual de Stella com poderes sobrenaturais, Oliver (Brenna Mejia), estudante do tipo cute que possui interesse platônico em Smith, além da irônica figura de Messias (o ator arakiano James Duval), uma espécie de eterno veterano maconheiro além alguns outros personagens mais, ou menos, enigmáticos como uma ruiva (Nicole LaLiberte), figura recorrente nos sonhos e visões apocalípticas do protagonista.

Como já foi dito é o sonho de Smith que dará a guinada para uma série cada vez mais aloprada de cenas e eventos estranhos que flertam com diversos gêneros e caminhos possíveis. O interessante de ‘Kaboom’ é como o roteiro e a direção conseguem manter o controle sobre a condução de uma história que se apresenta linear ao mesmo tempo em que dá abertura a desdobramentos cada vez mais imprevisíveis e rocambolescos num filme que facilmente pode ser declarado como um grande orgasmo sem precedentes.

A iminência de uma catástrofe ou revolução, de um fim do mundo que em grande parte poderia até ser compreendido dentro de uma dimensão individual do personagem, como no caso de ‘Donnie Darko’, de Richard Kelly aqui se confirma como a grande piada e força de ‘Kaboom’. Na tentativa de decifrar os sentidos apocalípticos e de pura conspiração que rodeiam a sua vida e de seus amigos, Smith acaba encontrando e se desencontrando em um festival lúdico de situações que nas mãos de outro diretor facilmente beirariam o pastiche e o ridículo, o que reforçam, nesse caso, a despretensão infantil de Gregg Araki. No seu universo o sci fi encontra o suspense, o regozijo do arsenal de referências teen, o encanto pelo technicolor, um anti naturalismo deliberado que vai de John Waters ao Godard de ‘Made in U.S.A.’, as aventuras e mistérios fluentes de uma mente vivendo o período da imaturidade universitária, as conversas triviais entre amigos recheadas de ironia e libido, os sonhos e aspirações bem ou mal correspondidos e a insegurança de um futuro incerto, porém excitado de possibilidades e surpresas.

‘Kaboom’ deve merecidamente ser assistido acima de todos os preconceitos não permitindo espaço algum para um público ‘mal comido’ pelo olhar. É um grande divertimento, desencanado e consciente de sua viagem particular. Araki cria um ‘filme tesão’ que se conduz numa emaranhado de preliminares cognitivas para após o clímax nos deixar boquiabertos com seu plano final. O ‘see you at the bitter end’ ao som de Placebo é a grande ironia de seu prazer, principalmente aos frustrados com a decepção pós gozo. A conclusão é a mais óbvia e única possível e por isso mesmo é tão chocante e desconcerta, that´s all folks.

Comic gay strip contemporâneo, se só acaba quando termina o único fade out possível é realmente o do absoluto desapego por tudo: Des CLIP ! CRAP ! des BANG ! des VLOP ! ET des ZIP ! SHEBAM ! POW ! BLOP ! WIZZ !

THE END.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com