Homem ao banho

O MOLDE E O PREENCHIMENTO

Se existe algo que permeia intensamente a recente e bastante apreciada filmografia de Christophe Honoré é a relação entre amor e desejo, suas reuniões e separações que bem a moda dos franceses, ainda mais pelo seu particular resgate maneirista da Nouvelle Vague, faz incidir sobre sua obra um grande jogo de relações que se testam. Na brincadeira de Honoré os afetos percorrem um jogo de sorte ou revés arriscando sentimentos e suas próprias individualidades, não importando o tipo de envolvimento: laços familiares, amizades, parceiros sexuais, amorosos, qualquer coisa. É sempre um jogo perigoso que lança os elementos e eventualmente os trocam, os embaralham, reposicionam para o bem ou para mal dos corações e corpos que participam.

Em ‘Minha Mãe’ a tensão erótica que deteriorava ao ponto da aniquilação o magnetismo entre mãe e filho, já em ‘Dans Paris’ a tentativa de impulso (tanto para viver ou se jogar) avant la haine, o número musical juvenil de perdas e ganhos afetivos em ‘Canções de Amor’, em ‘A Bela Junie’ talvez o filme mais frio sobre a beleza e um dos mais funestos sobre o amor heterossexual, passando pela insuficiência e cansaço generalizado em ‘Não Minha Filha, Você Não Irá Dançar’ até chegar em ‘Homem ao Banho’ onde as relações não dizem mais nada além da passagem de um corpo a outro, de uma cidade a outra.

Filme do traçado da caneta que liga os pontos para formar um desenho, mas também do itinerário das viagens. A tentativa de se ligar a outro e assim formar uma figura completa. ‘Homem ao Banho’ é muito sobre a essa vontade de ligação e encontro que nos faz literalmente avançar de um ponto a outro, de uma pessoa a outra. Às vezes o que sai após tanto traçado é apenas uma amontoado de riscos e arestas, assimetrias que antes de levarem a tudo (ou a todos no caso) respondem ao nada: marco zero nômade do amor.

Assim como a tentativa rarefeita de seus personagens em se manterem ligados no emaranhado de linhas e conexões o filme se apresenta em seu conjunto como uma obra um tanto irregular. Provavelmente muito dessa irregularidade se deve ao seu próprio material inegavelmente feito de retalhos e tentativas, fazendo com que essa afirmação sobre sua forma e conteúdo seja coerente com sua própria natureza, apesar do fator crítico e negativo contido nesta constatação.

Originalmente a idéia era a de se fazer um curta filmado na região de Gennevilliers, famosa por sua concentração étnica e cultural, além de ser considerada a periferia mais sexualmente interessante da região parisiense. Honoré com o tempo chegou à conclusão de que havia ali espaço para um material maior e decidiu transforma-lo num longa. Paralelamente as imagens de Gennevilliers o diretor utilizou parte de seu acervo inegavelmente pessoal sobre a divulgação de ‘Não Minha Filha, Você Não Irá Dançar’ nos Estados Unidos com Chiara Mastroianni e assim fundiu os dois materiais num mesmo filme e narrativa.

‘Homem ao Banho’ se torna assim um filme que procura se adequar ou se estabilizar dentro de sua unidade disforme, aparentemente feita de sobras e restos, tentativas, erros e acertos a procura de naturalidades e modulações do tempo presente. A isso convergem as improvisações aparentes e confirmadas pelo elenco, o aproveitamento instantâneo de notícias circuladas na mídia como a divulgação e leitura do caso envolvendo padres e crimes de pedofilia, o material de registro nova-iorquino e o próprio procedimento de filmagem na locação européia em câmera na mão com atores ou não-atores pouco conhecidos. Claro, a exceção de François Sagat.

Assim como Bruce LaBruce que utilizou Sagat em ‘L.A. Zombie’ (coincidentemente ambos os filmes foram apresentados juntos no Festival de Locarno), Honoré escolheu o ator devido ao forte reconhecido de sua figura, sua presença enquanto ícone não apenas de uma cinema pornô gay ou um dos maiores atrativo da Titan Men, mas porque Sagat é o modelo de um Adônis contemporâneo facilmente codificado, seja pela sua imagem física ou pelo consumo e identificação do seu rosto rememorado de vídeos facilmente encontrados na internet. É quase uma apropriação bressoniana do modelo no que há de mais automático e apático. Resta um corpo a responder aos estímulos de uma câmera despreocupada com o quadro, com o fora, mas ansiosa pelo suor, a pele e principalmente pela diegese.

Um filme feito de vazio querendo se preencher o tempo todo, precisando exaustivamente se acomodar a imagens e pessoas reais, a um conteúdo. Na forma (ou na fôrma) de ‘Homem ao Banho’ o conteúdo sempre escapa ou falta, talvez porque não exista. Por isso o material nunca é suficiente para dar conta de uma substância, de uma materialidade consistente. Dessa mesma forma reagem os personagens diante de seus desejos e do escopo narrativo, buscando incansavelmente um conjunto especial, físico ou humano, arquitetônico para adentrar ou pertencer.

No filme a principal relação amorosa já começa incomunicável e sem importância, onde nem mesmo o prazer físico consegue suprir o fino fio que ainda prendia os dois pares. Omar (Omar Ben Sellem) e Emmanuel (Sagat) já não conseguem compartilhar o mesmo desejo e menos ainda algum sentimento amoroso. A própria aproximação entre físicos e estilos tão diferentes já causa um interessante anacronismo visual entre o casal, principalmente pelo habitual tipo sexual com que Sagat normalmente contracena nos filmes pornográficos.

A desgastada relação não tem tempo de se mostrar e por isso mesmo os flashbacks surgirão como tentativa de apresentar alguns momentos vividos pelo incongruente casal. Logo na primeira seqüência Omar decide viajar por um razoável período de tempo. Como saberemos depois ele trabalha com cinema o que faz com que a viagem para Nova York caia tão à rotina de Chiara Mastroianni e a da equipe de Honoré também na cidade. Emmanuel fica em Gennevilliers no apartamento de Omar que ao sair deixou bem claro a vontade por não vê-lo em seu retorno.

Desse ponto em diante os dois nunca mais pertencerão um ao outro, se é que um dia realmente pertenceram com as cenas de insert do passado pretendem demonstrar. Há então a inicial e eterna bipartição que percorrerá todo o filme. Duas cidades, dois homens que em teoria ainda se gostam, mas não conseguem mais se relacionar. Ambos procurarão novas relações e experiências nos novos pólos em que estão situados.

Enquanto Omar está nos Estados Unidos com sua câmera digital abusando de zoom e movimentos ditos realistas ao lado de Chiara Mastroianni em apresentações e debates em escolas de arte Emmanuel padece da ausência do companheiro. Tanto de um lado quanto de outro os encontros serão inúmeros e variados, na metrópole americana Omar ao lado da atriz francesa passará dias e noites ao lado de um estudante canadense.

Nas imagens de lá pouco se fala, ou melhor, seria dizer que pouco se ouve, alguma coisa se vê. São turbulências amadoras de pouco ou nenhum compromisso, lanches e passeios diurnos, nudez noturna ocasional como se fossem bêbados anestesiados de um final de festa. Omar quase nunca aparece, muito possivelmente porque o ator de fato não estava presente na feitura daquelas imagens e sua presença acaba sendo deduzida enquanto permanência subjetiva do registro. Isso acentua ainda mais ausência do personagem, não apenas para Emmanuel, mas também para o espectador fazendo que Omar se torne meramente um fantasma sentimental, uma lembrança fugaz, dolorosamente esvaziada como ironicamente se tornam na maioria das vezes ex namorados ou objetos sentimentais do passado.

De cá Emmanuel procura o encaixe tanto meta quando literalmente, conseguindo pelo menos no segundo caso certa concretização mesmo que temporária em outros masculinos. Seu percurso é o da procura, a busca por um outro que substitua aquele que se foi, não importa se por pouco tempo. O movimento é aquele conhecido por todos no qual o rompimento ou ausência nos leva não apenas a substituição, mas também a inevitável comparação. Evidentemente ele não conseguirá suprir o abandono do ex nos outros garotos e homens que irá acabar se encontrando. A última tentativa de se livrar do assombro da falta é o desenho na parede, a materialização derradeira do apaixonado. Como tudo o que sobrou ela é plana e dura, inanimada, morta.

Se a imagem perdida de Omar dificilmente será igualada pela impossibilidade de uma identificação plena com terceiros, a imagem de Emmanuel também estará abalada naquela que é a melhor seqüência do filme quando ele vai até o apartamento de outro morador, um senhor culto e colecionador de peças e estudos de arte. O diálogo frio e objetivo sobre a figura moldada e sexual de Emmanuel (e de Sagat) indica tristemente a possível falência do corpo idealizado de uma masculinidade almejada, profundamente ineficaz enquanto emoção, feita apenas de superfície: um se torna desenho, o outro caricatura.

Ambos podem ser tocados. E só.

O efêmero talvez seja a grande permanência no filme, o que há realmente de absoluto. Nada dura além do tempo suposto ou nada parece durar mais do que o esgotamento natural e previsível dos acontecimentos e pessoas. A relação de Omar e Emmanuel que se esvai logo no começo para nunca mais ser restabelecida, a viagem e novidades do novo território com tempo para terminar, o sexo casual em grande variedade que não sobrevive além do tempo da própria transa, o filme em si que não tem mais forças para contar ou mostrar e por isso se encerra sem ter mais o que fazer.

‘Homem ao Banho’ mostra enfaticamente uma sexualidade em vias do fracasso, insustentável a longo prazo, relações com a validade vencida mesmo antes de seu término. Ao final a sensação que contamina tudo e todos é exatamente a do vencimento, todos vencidos por suas tentativas e fracassos, mesmo que no meio tenha havido qualquer aproveitamento e prazer. O que resta é apenas o tarde demais, inevitável constatação e anseio por uma novidade sempre desejada. Reversão fantasmagórica.

Se Emmanuel, o presente e aquele que amava, ‘não mora mais aqui’ é porque o fantasma na verdade nunca foi Omar, o que foi embora e desapareceu para sempre, lampejando nas lembranças e memórias, mas sim o primeiro que permaneceu e assombrou o apartamento.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação