Fausto

Fausto

Limbo Onírico

Não é fácil para nenhum cineasta o confronto direto, mesmo quando emancipado por suavidades estéticas, com grandes rochedos figurativos. A história ou as Histórias do cinema e da própria civilização frequentemente se chocam nas virtudes e nos desvios de superioridade.

Confronto desleal na medida em que o aparato audiovisual, técnico e simbólico, é forçosamente mais impactante do ponto de vista espetacular e imagético do que o ‘simples’ conhecimento intrincado do imaginário coletivo em seu mausoléu emoldurado de heróis, vilões e simplesmente lendas. Sintoma cultural de uma força estabelecida a ponto de ser contrariada pela vasta capacidade sensorial da arte; no caso, do cinema. Confronto por outro lado equiparado de forças em comum destreza no tempo.

Fausto

Tanto o mito quanto o filme sobrevivem de maneira ideal na atemporalidade. O filme vencerá o mito na medida em que o fará eterno através, diante e em razão de suas imagens. O mito vencerá o filme na originalidade de seu discurso e na sucessiva lembrança a partir de futuros e inspirados golpes de câmera, cometidos por outros ou novos cineastas. A guerra (não) acabou.

No panteão luminoso de sombras e projeções as figuras se amaldiçoam, se reviram, entortam, deslizam e rememoram. O cinema fabrica tudo, menos o esquecimento. O poder do cineasta é a gravidade de sua encenação que vampiriza o real (mesmo quando este não o é) a ponto de transportá-lo, aprisiona-lo diversas vezes possíveis ou suportáveis ao estímulo da tortura dos sentidos.

Houve aqueles que já ousaram forçar a latência de um tema, tão magnetizado quanto o assunto fortificado por ele. Um exemplo é certamente Hans-Jürgen Syberberg com seu épico Hitler – ein Film aus Deutschland, possivelmente o maior entrave de poderes já visto na história do cinema. Se Syberberg escolheu Hitler para o combate, ele o fez consciente de suas armas e de seu território: um filme.

Fausto

A vontade Aleksandr Sokurov ou sua consciência não se diferem tanto ao realizar este Fausto. Ao tomar para si a história ele também traz para si toda a História conseqüente, aliada a todo conceito e imaginário pré-estabelecido e fortemente reconhecido por tanto tempo. Não seria a ele permitido negligenciar como mero procedimento artístico a apropriação do mito de Fausto sem estar atento ao conjunto que traria consigo nesta criação.

O que Sokurov invoca é algo muito maior: das trevas o que ressurge não apenas o mito idealizado da moralidade, o enlace magistral entre corpo e espírito, o roubo filosófico da conduta humana através do ego e do poder. Somente pelo mito em si mesmo tal responsabilidade já seria grandiosa demais para uma absorção plena de suas intenções jamais simplistas.

As versões de Fausto são inúmeras na literatura e já eram antes mesmo das fabricações poéticas através de relatos e outros registros escritos. Médico, mágico, alquimista, astrólogo e antes de tudo um homem. Em oposição há Mefistófeles ou simplesmente o diabo. Entre eles há o mundo ou vários deles qual a capacidade de espelhamento, fantasias ou lentes. A lente de Sokurov, lindamente distorcida em sua vertigem elementar, coube a invocação deliberada de uma versão específica. Fausto não surgiria apenas de seu reconhecimento louvado e assombrado, não através de um culto generalizado, sem nome. Era preciso ser ideal e assim seu filme se torna livremente inspirado no mito evocado por Goethe. Um mito invocado por outro, retornado na figura de um cineasta operacional (‘Arca Russa), refrescado pela exímia capacidade de envidraçar a visão, enfeitiçá-la, torná-la transparente ou turva, dissimulada. Sim, Sokurov como o diabo que ludibria e seduz é o cineasta privilegiado pela lenda. Mas ele quer mais (como nosso personagem).

Fausto

Seu ‘Fausto’ não é apenas Fausto ou Fausto através de Goethe, tendo consciência não apenas do legado histórico e literário, mas também cinematográfico vide Murnau a quem ele diretamente sabe reverenciar enquanto realização precedente. O ‘Fausto’ de Sokurov é além de tudo o encerramento de uma tetralogia.

Como se não bastasse o peso de sua arrojada fantasia plutônica sobre o inferno em questão, ele ainda o fez enquanto conclusão à altura de esculturas um tanto desgastadas, mas sempre imponente de um Olimpo obscuro. Se a triangulação energética de Moloch, Taurus e The Sun, respectivamente filmes que figuram em torno de Hitler, Lênin e o Imperador Shouwa-Tennou Hirohito, não é suficiente, o fechamento eterno virá através desta caixa conceitual que poderá aprisioná-los e invoca-los novamente, sucessivamente para todo o sempre.

O quadrilátero, a Pandora, de Sokurov é o seu cinema, mais especificamente sua tetralogia. O encerramento proposto por este último filme acaba por ser mais do que uma referência ou metáfora mais ou menos direta a cada um de seus ‘personagens’ anteriores retratados e sim um literal fechamento. É preciso que estejam enclausurados na caixa preta cinematográfica ao lado de tantos outros monstros, ídolos ou fantoches (novamente Syberberg).

Fausto

Em linhas gerais o que Sokurov faz é servir-se diabolicamente de seu poder enquanto diretor e artista agrupando com calma e sabedoria este panteão demoníaco por ele despertado. Os braços e mãos do cineasta que elevados podem recriar, assombrar e lançar novamente ao fosso como um maestro ou bruxo todos os modelos, corpos ou fantasmas pode ele iluminados. Para dar conta de Hitler, Lênin e Hirohito só mesmo através de Fausto.

Sokurov experimenta, assim como o Dr. Fausto, a excitante e perigosa alucinação por suas vontades. Seu filme torna-se livre dentro de uma inegável adaptação a ponto dele intensificar ou adormecer a seu bel prazer passagens mais específicas da conhecida história. De todo modo alguns elementos permanecem até mesmo pelo fator elementar presente em cada um deles. Encontraremos o médico em diálogos simbólicos seja com seu assistente Wagner, com o próprio diabo e com Marguerite, aquela por quem ele vem a se apaixonar, porém nunca tais falas se tornam deslocadas ou forçosamente em relevo dentro da narrativa, pois adquirem sempre um caráter quase coloquial reforçado pela ambientação adequada, pela arte e figurino.

Os enfrentamentos e oposições entre vida e morte, corpo e espírito e amor e ódio existirão durante todo o filme, porém as dicotomias nunca se transformam em maniqueísmos óbvios como a própria faz questão de relativizar. Os posicionamentos e ações morais sempre se mascaram ou se invertem numa refração complicada de julgamentos.

Fausto

As intenções e sentimentos de Fausto acabam se difundindo obliquamente perante aquilo que normalmente classificaríamos como bem e mal, revelando a fragilidade do ser humano e suas distorções elementares perante um deus divino ou maldito. Os dois ou mais lados da personalidade, da própria mente em função do corpo e de um dito espírito acabam se misturando ou mesmo se enganando.

Como é próprio do diabo, estamos diante de um jogo cerebral e sedutor (mesmo quando abjeto, sombrio e asqueroso) de inegável dissimulação, mentira e espelhamentos. O que Sokurov faz é se aproveitar desta reversibilidade lúdica da relação homem, salvação e danação fazendo-a recair de maneira espectral em sua estética cinematográfica. A vigorosa tentação do diretor que assina, como Fausto, o contrato ontológico da troca luminosa. Mesmo enquanto objeto imaterial o filme estabelece sempre o acordo (comercial e demoníaco) de uma apropriação do outro, entre atores e espectadores, entre corpos e câmera, entre o olhar e o dinheiro.

À luz de trevas cada vez mais superiores, o conhecimento do cineasta invade as profundezas de sua própria vontade. Selado uma vez o pacto da câmera só resta a ele esperar a dívida de um contra campo idealizado assinado em letras de autor.

MATHEUS MARCO

Fotos: Divulgação