2 ou 3 coisas que eu sei dela

“Qu’est-ce que l’art? Formulaire de devenir le style, mais le style est l’homme, donc l’art est l’humanisation des formes.”
Narrateur (Jean Luc Godard)

LICHTENSTEIN POLITIQUE

Recentemente foi lançado um vídeo para divulgar a parceria entre a linha The Generic Man com a Comme des Garçons Shirt que possuía do seu começo ao fim uma série de referências a pelo menos três filmes de Godard: ‘Vivre as Vie’, ‘Une femme mariée: Suite de fragments d’un film tourné en 1964’ e ‘2 ou 3 choses que je sais d’elle’. O fato de remeter especificamente a este terceiro, principalmente por fazer uso do plano da xícara de café, provavelmente o melhor e mais emblemático do filme, me fez repensar esta obra pouco explorada da filmografia do cineasta.

Realizado em 1966 e lançado no ano seguinte ‘2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela’ foi filmado simultaneamente com ‘Made in U.S.A.’, filme com o qual ele estabelece vínculos bastante expressivos, tanto no que diz respeito às típicas reflexões e pensamentos quanto, e ainda mais, no que se refere ao seu visual. Tal clara proximidade parece óbvia pensando na particularidade de terem sido realizados ao mesmo tempo ou pelo menos em períodos de tempo quase inexistentes separando um do outro, mas é interessante observar como reúnem e demonstram o momento mais pop da carreira do diretor franco suíço.

Enquanto ‘Made in U.S.A.’ prefigura dos enquadramentos a própria trama como uma versão cinematográfica de uma HQ, como um gibi da Disney preenchido por sangue (‘não é sangue, é vermelho’, ‘Week End’), ‘2 ou 3 Coisas’ parece ser uma revista feminina vintage extremamente colorida sobre comportamento, filosofia, política, fashion, linguagem e pensamento. Na metralhadora de Godard tudo se mistura numa grande paisagem, que como um rosto, é composta de significados e significantes.

Como filme repleto de adesivos, com suas figuras, formas, cores, traz a impressão de que podemos a qualquer momento retirar da tela com os dedos determinado personagem, objeto de cena, peça de roupa ocorrendo dentro da fundamental lição brechtiana do distanciamento visual. Dessa forma se apresentam os planos de puras descrições, toda a bidimensionalidade do discurso e das imagens até a habitual quebra da quarta parede tão cara ao cineasta.

Além de adesivos sua apresentação é feita à moda de livros infantis, inversamente didáticos, já que não há, nem nunca houve, simplicidade no discurso godardiano das palavras e das coisas, para não perder o trocadilho foucaultiano deste catálogo sempre presente, atual e delirante do mundo.

A queda pela cartilha animada, lição de casa de cineasta, intensificada anos depois com a criação do Grupo Dziga Vertov e o afastamento do cinema ‘comercial’, aparece exaltada neste filme num processo de feitura que irá refletir logo em seguida na realização do manifesto pop maoísta ‘La Chinoise’. Não é a toa que em dois momentos do filme a presença de uma criança, filho da protagonista, apareça como um lampejo gracioso, intelectualmente criativo e ainda assim bastante infantil. Ele continua sendo um menino, falando como tal, gesticulando e brincando, porém nada do que diz é apenas um pensamento de uma criança, nem apenas o de um adulto. É um pensamento, ponto.

A revista ou livro de idéias, o filme de Godard, é como uma lição de filosofia extremamente viva cujo conteúdo aparece como numa aula in motion picture de variedades, com espaço para todas as inserções lúdicas, fonéticas, lingüísticas, midiáticas. É o efeito de uma bomba de idéias que explode para dentro como que agarrada pelas mãos do diretor, um super-herói ciente de seu poder e diversão. Bomba esta que lançada ao espectador explodirá em diversas partes, suas cenas, seus planos, suas cores.

Explosão e implosão. O jogo de palavras, o nome das palavras. O ping pong entre conotação e denotação sempre presente em sua obra, filmes que falam demais, filmes que também ouvem em demasia. Os ruídos de dentro e os ruídos de fora, som direto, som cortado, voice over, barulhos, interferências, música, brinquedos: artilharia do áudio.

Falar nunca é em vão, mas é preciso também saber ver e ouvir. Os problemas da linguagem aparecem com freqüência e principalmente neste filme. ‘2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela’ além de muitas coisas é um ‘filme etimológico’ que de tempo em tempo nos coloca diante de questões de significado, a compreensão por tudo aquilo o que há em volta.

O mundo e as relações que temos com ele sempre passam por uma ligação entre interior e exterior, dentro e fora (mesmo do enquadramento), como também é a relação com a comunicação e entendimento. O cinema de Godard não sobrevive sem esta oscilação entre os pólos, one plus one das movimentações, recombinações, do pop ao erudito, de Wittgenstein a Andy Warhol.

Para que possa haver comunicação e entendimento, diálogo ou monólogo, narração, leitura, sonoplastia reflexiva por excelência, é preciso que se conheça aquilo que se fala ou mesmo que não se conheça, mas que haja algum exercício ou procedimento de conhecimento, estabelecimento de relações, superfícies, profundidades, questionamentos de todos os tipos. Em vários momentos do filme é possível perceber como a questão nominal reflete numa série de outros desdobramentos do entendimento e consequentemente das ações. O fato de uma peça azul ser assim justamente por ser chamada de azul, sendo que se fosse verde qual e como seria a reação a esse mesmo objeto? Como trocar as posições entre os nomes, as setas que nos levam aos significados; quem os criou ou lhes deu um nome? Deus e dicionário começam com a mesma letra.

Por exemplo, para nós neve é sempre neve, branca ou cinza, basta ver uma imagem que a ela corresponda e poderemos reconhecer, iremos apontar e dizer seu nome, aquilo que é. Já os esquimós certamente nos dirão que há uma variedade delas, seja pela sua tonalidade, textura, consistência etc. Em ‘Prenon Carmen’ Godard volta a discutir as questões nominais para colocar como o próprio título já mostra a indagação sobre aquilo que viria antes do nome. Como falar ou conhecer as coisas antes delas terem sido nomeadas, ou seja, antes de existirem ou serem determinadas por uma maneira específica? Lá ele chegará à conclusão que antes do nome vem a aurora.

Aqui ainda há um problema que provavelmente sempre existirá em sua carreira a respeito de como se chegar a uma imagem. ‘Não imagens justas, mas justo imagens’ naquela que é a frase capaz de sintetizar seus procedimentos de realização e criação. É pensar enquanto cineasta nos motivos de se escolher determinado plano, ângulo para a câmera e não qualquer outro possível. O porquê disso ao invés de aquilo, não enquanto dúvida, insegurança, e sim por exercício, lição. Godard, professor, aluno e artista de si e de todos mais uma vez encontra-se sozinho, como ele sempre lamentou em maior ou menor grau, na sua pluralidade reflexiva. Escolha política do cinema, escolha do saber. Saber cinema. Godard, o homem que sabe demais.

Mas dela o que sabemos? Ela que não é 1 ou 2: é (sic) 3. Três coisas que sabemos dela: Paris, Marina Vlady, Juliette Jeanson: 1 filme. Atrás, a frente, ao lado, acima, abaixo, dentro e fora dele, por todos os lados, direções e reflexos passam esses três elementos: uma cidade, uma atriz, uma personagem. Como veremos são todas uma só coisa, ao mesmo tempo em que são três diferentes. Matemática brincalhona, ABC dos números complexos, não há separação entre os conhecimentos. Para que possamos saber iremos antes ver e ouvir, audiovisual.

Não há também separação entre essas imagens e sons, entre aquela que é a atriz e aquela mulher veste seu mesmo figurino, com o mesmo corte e tipo de cabelo, cor de olhos, pele, lábios, novamente as descrições das aparências. Aparências também do entorno, a cidade e as geografia. Filmar uma paisagem é como filmar um rosto e vice versa. Não há natureza morta para Godard, tudo é vivo mesmo quando estático, como é frequentemente a sua câmera.

Numa fórmula de Bachelard na qual ‘sou o espaço onde estou’, ‘2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela’ capta o encontro entre as existências e as aparentes separações entre as coisas. A atriz que também é a personagem, esta que fala e olha para a câmera, pois justamente antes de personagem é atriz. Mas a personagem é uma mãe, que além de dona de casa acaba por se prostituir eventualmente. As duas ou a mesma coisa estão num filme, contido numa cidade, Paris. Cidade esta que não está separada de outras cartografias e regiões como marcada presença histórica do Vietnã alerta no filme. Dinâmicas dos conjuntos, contém e contido são diferentes modos de saber a mesma coisa.

Na seqüência que possui o plano mais inspirado do filme, Godard prova mais uma vez como parte do simples para se chegar ao complexo. Para falar da luz e toda sua metafísica ele não escolhe um laser desconhecido, mas sim um abajur comum. Na bela cena do bar ele consegue chega à criação de uma galáxia somente a partir do movimento de uma xícara de café. Ao fundo então sussurra que devemos escutar e olhar ao nosso redor mais do que nunca, o mundo, seu parente, seu gêmeo. Renascimento da consciência. Antes que haja o saber é preciso que façamos existir o ser.

MATHEUS MARCO
matheusmarco@brrun.com

Fotos: Divulgação