Símbolo do Renascimento, do desejo de aniquilamento do teocentrismo, do anúncio dos discursos científicos e da revisitação da arte grega, em uma tentativa de retomada da moralidade de uma estética da existência, “O Nascimento de Vênus”, de Sandro Botticelli (1483) insere na ordem da “modernidade” o signo do feminino, que emerge das águas em uma concha, e é saudado pela deusa Horas. É no início do século XX, após o nascimento de Vênus, que o fotógrafo, pintor e anarquista Man Ray, influenciado pela estética surrealista, enclausura e silencia a possibilidade de beleza em Boticelli. Sua obra “Vênus Restaurada” é a epígrafe de uma sociedade entre guerras, que se viu no desejo de indagar e questionar o papel da subjetividade nas sociedades pós-revolucionárias.
Mas afinal, o que separa os cinco séculos do quadro de Boticelli da escultura de Man Ray? Parece-me que o mais importante e urgente neste momento, não é a resposta definitiva para esta pergunta, mas o caminho inverso: o que possibilitou a inserção da escultura de Man Ray na ordem da simbologia artística, em uma época em que os gêneros “teatralizavam” as consequências do movimento feminista do século XX?
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“Vênus Restaurada” de Man Ray e “O Nascimento de Vênus” de Boticell.
Radicalizado na pastoral da carne, o corpo sempre ocupou papel dualístico nas subjetividades humanas. Seja em sua colocação no discurso religioso, como agente do pecado, da culpa e do profano, seja nas artes, nas ciências e na filosofia, que ora enxergavam neste “espectro” a possibilidade de reinvenção, ora por sua beleza, ora pela capacidade de reprodução ou dispositivo de imortalidade. Segundo a filósofa Marilena Chaui, em seu “Repressão Sexual – Essa nossa (des) conhecida” o pensamento ocidental estabeleceu “clara diferença entre corpo e alma, matéria e espírito, coisa e consciência, e ao relacioná-los de modo hierárquico, permitia a superioridade e o de direito de mando”. Na ciência moderna o corpo é visto como uma máquina-operária, que assim como a corda do relógio depende de um impulso (alma). Com o advento das tecnologias contemporâneas, como o computador, os novos modelos de robôs e a vida digital, o modelo de “máquina” perde a referência com o exterior. O corpo além de previsível, passa pelo processo de medicalização. Não apenas as patologias existentes, o cuidado recai sobre as potencialidades destas, em um contínuo movimento do cuidar e prover o corpo. A interferência em seu “programa” ou o código genético, incluindo aí, os processos de recriação das vidas artificiais, sem a necessidade dos meios naturais ou sexuais, invoca a libertação laica sonhada pela humanidade: a ciência torna-se o ópio e o fetiche do povo. Retira da humanidade o seu maior castigo e culpa: o sexo. O porquê deste projeto? De mostrar que a vida pode vir da não-vida? Como aponta ainda Chaui: “O dispositivo de sexualidade na sociedade burguesa substitui o critério do sangue pelo do sexo, e ao fazê-lo, torna possível a ideia central da psicanálise: sexo como simbolização. Essa simbolização, porém, diz Foucault, é um mecanismo do poder para dirigir o corpo, a vida, a proliferação”.
Se por um lado temos uma nova instituição sexual pautada pela ciência, assistimos desde a ascensão burguesa – séculos XVIII e XIX – a retirada do sexo de sua gênese: o prazer e a arte erótica. Invenção da Idade Clássica ou Moderna, a sexualidade, enquanto saber passa a reger a funcionalidade do ato sexual. Contrariando a ideia dominante – e justamente por ser dominante deve ser questionada – de que em nossa sociedade o sexo em sua totalidade seja reprimido, censurado ou interdito, o filósofo e epistemólogo francês Michel Foucault propõe uma análise de coerção da sexualidade, por meio da sociedade confessada. Nunca se falou, analisou, catalogou e se produziu saber-poder em torno das sexualidades, como em nossa sociedade. Desde o século XVIII, quando os Estados passaram a se preocupar com os problemas da população: para maximizar a vida, pontuar o crescimento demográfico, o controle familiar da população, a natalidade, a inserção dos métodos anticoncepcionais, as prevenções de doenças venéreas, os cuidados e a higienização dos atos sexuais. Para Foucault é neste dizer sobre a sexualidade, que reside sua forma, não apenas como interdição, mas como projeto político de controle dos corpos, ou em seu vocabulário filosófico, o biopoder. Este mesmo projeto que toma a sexualidade para si, não contente, se apropria da psiquiatria, da anormalidade seja ela moral ou sexual. Interessante notar que, não à toa, surge no mesmo período a noção de homossexualidade, evidenciando então o seu caráter de invenção para reafirmar a sociedade heterossexual. A homossexualidade reitera o jogo de poder e de opressão exercida pela cultura masculinista, produtora, reprodutora e heterocentrista.
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O corpo em Henri Matisse e no filme “Shortbus”.
No capítulo “E voga o sentido”, do livro “O Império do efêmero – A moda e seu destino nas sociedades modernas”, o francês Gilles Lipovetsky sustenta a tese de que o século XXI ao assistir a derrocada das velhas Ideologias apoia-se nas liberdades e individualidades propostas pela moda. Para ele, foi o estilo de vida lúdico-estético-hedonista-psicologista-midiático, que minou a utopia revolucionária ao desqualificar os discursos, louvando a sociedade sem classe e o futuro reconciliado. Ora, há neste ponto talvez um paradoxo, já que a moda no plano do simbólico possa representar essas aspirações e desejos na sociedade. Na prática ela se contradiz justamente por ser a engrenagem da sociedade de consumo, da valorização do Ego, em detrimento da vontade de combater, e por ser a última instância do projeto burguês. Levando em consideração o que o próprio Lipovetsky aponta, de que a utopia revolucionária cedeu lugar à moda, podemos então pensar que todas as revoluções impulsionadas por ela, como as das liberdades sexuais, se inscreveram em um discurso experimentalista?
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O filósofo francês Gilles Lipovetsky e a coleção Spring 09 da Maison Martin Margiela.
Possibilidades deste cenário: a nova era da industrialização, o retorno da mulher ao lar desempenhando o papel de provedora, sonhos de consumos capitaneados por eletrodomésticos, automóveis e a reinvenção do discurso da beleza, a juventude que, no papel de herdeira e detentora do poder de compra, reivindica as liberdades e individualidades no plano do subjetivo e do sexual. Na política, o Maio de 68, que para a filosofia de Lipovestky pode ser inserido mais como uma revolução de moda, do que de transformações sócio-políticas.
Coincidência ou não, nesta mesma época, Foucault se debruçava sobre a sua teoria de poder e de sexualidade como saber e conhecimento. Aqui também, a editora-chefe da Vogue América Diana Vreeland reunia pela primeira vez na história da moda, uma coleção de roupas e tecidos para exposições no Metropolitan Museum of Art de Nova York. Na esteira, o estilista Yves Saint Laurent foi o primeiro na década de 70, a catalogar a sua coleção em um acervo em sua maison. De aparente frivolidade e consumo, a moda ao reunir suas inventividades e discursos em um projeto tipicamente iluminista e de apropriação do conhecimento, estabelece para si um novo saber-poder.
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Rei Kawakubo em sua Comme des Garçons Fall 09, Lady Gaga e Andrej Pejic.
Se levarmos em consideração as teses foucaultianas de biopoder e biopolítica nas sociedades modernas e contemporâneas, a invenção do corpo e da sexualidade na Idade Clássica ou Moderna e o seu projeto de funcionamento de uma sociedade que sustenta os papéis de gêneros, da heterossexualidade e por que não, da homossexualidade, de que forma devemos repensar os papéis desempenhados pelo que se convencionou a chamar de “liberdade sexual”? Afinal, de quais liberdades sexuais estamos falando?
Não o desmerecimento das lutas e das reivindicações das “minorias”, mas o entender do que significou durante séculos esse aprisionamento e adestramento dos corpos, que agora, são televisionados, ridicularizados, louvados nas passarelas nas vitrines, nas sociedades de espetáculos e na Indústria do sexo. Não simplificando o discurso e a tese, as novas celebridades, portadoras das vozes de Maio de 68, como Lady Gaga e ainda, de certa forma, Madonna subvertem e livram a ordem do corpo de qual maneira? Assistimos uma glorificação da androginia, encarnada nas figuras da modelo Lea T e do australiano Andrej Pejic, como apenas elemento de discurso, ou rompimento do corpo como máquina de poder?
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A Filósofa espanhola Beatriz Preciado.
Heresia do pensamento e das individualidades: não precisamos apenas reivindicar a ressignificação destes corpos-sujeitos, sobretudo, “saber” se “estes” desejam a libertação. Saber não apenas como arma da dialética da resistência, mas como arma da eloquência do silêncio e do tabu que separa o homem de sua integração ao prazer e arte erótica: a morte, ou a libertação de Vênus.
Ponto de Vista: Entrevista no “El País”, com a filósofa Beatriz Preciado em 2010 (em espanhol): http://www.elpais.com/articulo/portada/sexualidad/lenguas/Todos/podemos/aprender/varias/elpepusoceps/20100613elpepspor_8/Tes
BRUNNO ALMEIDA MAIA
brunnoalmeida@brrun.com