Que a rua exploda, então…


Bansky.

Se existe nos gregos antigos uma ligação ou ponto de coexistência com a nossa civilização, esta é a do aparecimento em momentos oportunos da figura de Dionísio. Há muito, tenho pontuado aqui nesta coluna, a necessidade de uma revisão de certos autores, e principalmente, de certos signos, mitos e ritos abandonados em nossa cultura. Falei também, da falência desta cultura, quando ela, não aderindo mais a vida, torna-se um simulacro ou apontar incessante de uma crise superestrutural. Utilizei as reflexões do teatrólogo francês Antonin Artaud como referencial. No artigo de 06 de julho, intitulado de “O Silêncio de Dionísio” indico que, ao contrário do que o filósofo alemão Nietzsche anunciou em “Deus está morto”, era Dionísio então que estava “morto” e “silenciado”, e que só agora, no século das crises, sentimos o seu fétido sepultamento. É chegada a hora da filosofia, da poesia e da anarquia do autor: sua própria negação, ou ainda, o despertar do ato político.

Afastando-se da religiosidade, do dogmatismo e conseqüentemente do fundamentalismo, o mito para a cultura grega era o plano estético da vida, que ao humanizar, portanto, não ideologizar as figuras longínquas de suas realidades, permitia o embate dualístico presente no ocidente desde os tempos remotos. Não a dualística separatista, como veremos mais tarde nas novas moralidades, mas uma espécie de unificação dos dois pólos, que não silenciados, eram encarados como humanos. Ao narrar tais mitos, diferentemente da Pastoral da Carne, ou da moral judaico-cristã, que coloca essa vida em um patamar do além, ou recentemente, em uma tentativa de controle dos corpos, patologizando-a, prolongando-a, e confundindo o nascer, o viver e o morrer, a simbólica grega era a essência do próprio jogo teatral: o aqui-agora, a simultaneidade, o reflexo de nossas próprias ações. Em linhas gerais, era necessário para o grego, ao narrar e significar tais mitos, saber que sua existência estava sendo contada no tempo presente, ou a necessidade que nos fala Hannah Arendt da memória.

E de quais formas, a cultura grega exteriorizava esse embate? A própria ágora, praça central de discussão política, social, econômica e comercial, e mais tarde, o théatron (teatro) eram as arenas que se desenrolavam as narrativas, e a memória se fazia presente. Parece-me que a pergunta mais pertinente seja: como e quando em nossa cultura aconteceu este rompimento do jogo do tempo presente? O que nos colocou ainda, diante da separação entre político e artístico? Aponto dois possíveis rompimentos: a liturgia católica, que mumificou essa representação, tomando para si, as mesmas alegorias gregas, mas em um sentido moral, passivo e pacífico. O segundo repente é a mecanização da vida, a partir da Revolução Industrial, que ao mostrar ao homem que as máquinas podem ser extensões do corpo, permitiu o aniquilamento deste embate. No contemporâneo, a espetacularização do visível – em minha opinião, a chegada ao ponto máximo do que Guy Debord chamou de Sociedade Espetáculo – que ao tornar tudo científico, explicável e ideológico, afastou o homem da vida.


Teatro Grego.

O que assistimos desenrolar em nossas vistas atualmente são talvez, a imagem e a quimera do que desejamos. A problemática não recai apenas sobre a questão da sociedade imagética, até por que os gregos eram imagéticos, em outros sentidos. O temor se faz presente, quando estas imagens são distanciadas da existência. Para isto, temos inumeráveis exemplos: a propaganda, o espetáculo e o discurso político, a indústria do sexo, a ciência do sonho (moda, TV, cinema), e claro, recentemente a Internet e as plataformas digitais.

Têm-se esses exemplos de estupidificação da vida e do embate, temos por outro lado, a presença da arte (catarse) como perpetuadora ainda, do ideal grego? A resposta é incerta. Primeiro por que nos colocaria na questão da arte e da cultura (ideologia, por excelência), segundo que, o que explica o desinteresse, não do público muitas vezes, mas de muitos artistas em pontuar a arte, para além da significação simbólica, quando esta, a exemplo do teatro, é também força, meio e ponto político-transformador? E seria a política, na sua essência, jogo de simbologia?

Em primeiro lugar, a política só pode ser entendida como agente de transformação. Era o exercício que os gregos praticavam no teatro: a catarse era o princípio ativador de uma discussão, que antecipava o debate público da ágora. Ou o contrário: entendia-se a ágora, por meio da catarse teatral. A libertação só acontecia, no entanto, nas festividades à Dionísio – ou Baco em Roma. Eis a morada do perigo que na Grécia se fez presente: a rua e participação deste jogo catártico do povo, ora como sátiros (homens) e ora como mênades (mulheres). A própria figura de Dionísio era a essência da negação de gêneros: afeminado, com barbas e dubiamente jovial.


Cortejo Dionisíaco e o período entre Carnaval Medieval e a Quaresma.

Opondo-se a perspectiva evolucionista e darwinista, Artaud procurou como gênese de seu “Teatro da Crueldade” justamente a “magia” destes rituais, ditos primitivos. Aproximando-se do que os libertários dos anos 60 pregariam em suas revoluções, ao utilizar a “magia primitiva”, não desejava apontar uma nova lógica ou um novo pensamento, mas mostrar como a arte, inserida no contexto de cultura contemporânea pode ser pensada fora do enquadramento estético, já que a partir da Idade Clássica (ascensão burguesa), esta, passou a ser um campo da ciência/ filosofia.

Os exemplos destes rituais e embates são muitos, como o já citado cortejo de Dionísio e o Carnaval medieval. A atual configuração da festa carnavalesca, ao propor apresentações midiáticas em um espaço privado, perdeu a sua relevância de caráter político, público e ritualístico. Passou apenas, a ser um elemento da cultura.

Ironicamente, no século da crueldade espetacularizada, Artaud propõe o seu “Teatro da Crueldade”, para falar da “tônica desestruturadora da arte, em seu aspecto grave e implacável, capaz de colocar o homem diante de situações extremas, exigindo dele uma atitude heróica da vida”, conforme nos aponta o sociólogo Cassiano Sydow Quilici em seu “Antonin Artaud – Teatro e Ritual”. Para o francês, o verdadeiro teatro deveria romper as classificações normativas da ordem cultural contemporânea, e negar a sociedade narcotizada pelo consumo do lazer e do entretenimento.


Manifestação Mackenzie – 2010.

No artigo “A rua é uma dinamite”, publicado em 25 de novembro de 2010 em meu blog, em ocasião da manifestação contra o posicionamento e declarações homofóbicas do Chanceler Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes da Universidade Mackenzie, pontuo alguns indícios desta retomada de Dionísio, do jogo do tempo presente e da função social da arte e do teatro: “O que ganhava contornos de “ilegalidade”, já que não havia nenhum líder oficial representando o grupo de manifestantes no pós-Mackenzie, personificou o espírito das manifestações populares, onde o povo ocupa as ruas, e os líderes são individuais, visando o coletivo. Reflexo do tempo, das mudanças sociais e as turbulências da última eleição? É a manifestação orgânica, dionisíaca, apolínea, apolítica e política. A prova de que sim, a rua continua sendo uma dinamite e a calçada, uma zona confortável.” Vale ressaltar, que este texto foi escrito semanas antes das explosões das manifestações e levantes populares ao redor do mundo, caracterizados pela mesma simbologia.

Já notávamos na época, o clima que perpetuaria as marchas seguintes, não só no Brasil, mas na Primavera Árabe e em outras ocupações públicas ao redor do globo. É o tempo da retomada do cotejo Dionisíaco. Em outras palavras, aquele poder de mudança e transformação da arte, especificamente o teatro – que foi sepultado antes do pensamento único – reencontra agora nas ruas e nas marchas seus pontos de fixações.

Não que as manifestações anteriores a este período, não estavam caracterizadas pelo estético. Atualmente, como visto nas últimas Marchas das Vadias, percebemos a locução entre o sentido político e o estético: performances, imagens de corpos que provocam catarses, cartazes com dizeres, músicas, happenings e a eloqüência simbiótica entre a platéia e público. Como no teatro grego, no cortejo de Dionísio ou ainda, na proposta de Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, a platéia ao assistir a urgência das vadias, das putas, das lésbicas, das mulheres, das santas, das travestis, dos LGBT, dos libertários, dos maconheiros, dos que ainda sonham com o (im) possível, sente a dor da crueldade destas existências, não por que são piores ou melhores, mas por que existem no limite do que supomos como vida. Aquilo que a sociologia denominou durante muito tempo de excluídos, são os sátiros e as mênades Dionisíacas, ou o homem trágico, na concepção nietzschiana.


Marcha das Vadias em SP e em Campinas.

Só por meio da Vontade de Vida, como afirmou o filósofo alemão Schopenhauer, que perceberemos a importância de cada existência. Para ele, a vida transcorre em meio à maldade, ao egoísmo, aos trabalhos e às dores. Como contraponto há a compaixão, como algo inerente em todas as culturas e épocas, independente de religiões e ascéticas. É esta compaixão sentida no cortejo de Dionísio. Ao ver a crueldade e a dor do outro, o ser humano se transfigura. Apesar das supostas individualidades, a partir do momento que isto ocorre, há uma espécie de comunhão e partilha.

Se “ninguém se liberta sozinho, mas em comunhão”, como afirmou o educador Paulo Freire, faremos entender nestas manifestações populares e Dionisíacas, o que nos separa dos gregos: o nosso distanciamento do espaço público, como elemento de ágora política. Sem o otimismo cristão, é chegada a hora novamente do negar, para principiar: é tempo de reivindicar o que nos une aos antigos: o entendimento de que a rua é uma dinamite. Assim, quem sabe, teremos de volta a poesia que liberta, por meio do pensamento e das imagens. Se este pensamento liberta, depois, só poderemos acreditar no amor – no sentido de memória – quando ele realiza o pensamento. Perto do que negamos como primitivo, longe das racionalizações que aprisionam. E que a rua, como potência de arma, exploda então…

BRUNNO ALMEIDA MAIA
brunnoalmeida@brrun.com

Fotos: Divulgação