Estamos morrendo de tédio!

Ponto em comum entre a mitologia grega e as nossas atuais “simbologias”: quando uma personagem muda de forma, abandonando o aspecto humano, para se assemelhar a algum elemento natural ou “antinatural”. Ironicamente, usei este paralelo estapafúrdio de duas sociedades narrativas, aparentemente opostas, para exemplificar em como as palavras ortodoxas daqueles que enxergam no capitalismo tardio e no modelo neoliberal, a última derrocada do que se supõe humano, possui um sentido quase “primitivo”.

Não é estranho, em tempos de incertezas e crises, ouvirmos as afirmativas de que o homem, integrado em sua alma e corpo, e sistematizado em um complexo de tecnologias, passará então, a ser designado como homem-máquina. Ou nas palavras de Gramsci: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, umas grandes variedades de sintomas mórbidos aparecem”.

No conhecido mito de Narciso, temos a personagem Eco que se apaixona por esta bela criatura, filho do deus do rio, Céfiso. Ao tentar seduzi-lo, Eco só ouve então as últimas palavras do jovem. Eco definha até restar somente sua voz ecoante. Ela amaldiçoa Narciso, que mais tarde torna-se um “tanque” e, vendo nele seu reflexo apaixona-se pela bela imagem que não pode possuir. Ele também definha e ao morrer é transformado na flor narciso. Em nossas narrativas contemporâneas, o cinema, ao lado das outras artes, encarregou-se em mostrar esse mal estar simbiótico.


Salvador Dali e sua metamorfose de Narciso.


No filme “O Deserto Vermelho”, de 1964, Michelangelo Antonioni, apresenta sua Giuliana (Monica Vitti). De família tipicamente burguesa, ascendente da nova classe pós-guerra da industrialização, a personagem é casada com um rico gerente de usina. Sua vida se resume na tentativa de montar uma loja, para ocupar o tempo, os afazeres domésticos, o cumprimento do “papel de mãe” e a angústia inexplicável que ao longo da película, transforma-se em um estado clínico de depressão. Os sons das máquinas e as imagens de cores saturadas provocam o típico exercício de gênio, antecipando as angústias do individuo sob o capitalismo triunfante. Em uma das sequências emblemáticas, Giuliana, o esposo, o amigo engenheiro e mais dois casais passam um final de semana, trancados em um barco. Em um determinado momento, surge uma proposta de orgia no grupo. Do desejo do ato passamos ao discurso do ato. Nenhuma ação, nenhuma tentativa de modificar o cenário. A única coisa real são as paredes vermelhas e a situação de melancolia da personagem central. Assim como as máquinas, estes desejos são construídos simbolicamente na ordem das palavras. O que era para ser um ato de “libertação” torna-se um teatro humilhante. Na cena final do filme, Giuliana, após dialogo com um estrangeiro, desiste de cometer suicídio. Provoca a vida em um ato de desespero e de redenção. O filme volta para o começo: a personagem de mãos dadas com o seu filho, passeando pelas máquinas, sons, fumaças e cores das usinas. O mito se refaz.

Mas afinal, o que está em jogo nestas duas situações aparentemente extremas? Suponho dizer que, chegamos naquele limite de barbárie apontado por Gramsci. Não mais apenas a crise de uma cultura, não mais a crise de um modelo econômico, não mais a crise de um ideal político, mas sim a crise das relações humanas, ou ainda, a destruição da “beleza”.

Entende-se desde Aristóteles em “Política, Livro I”, que “é evidente que o Estado (sociedade) é criação da natureza, e o homem é por natureza um animal político”. Partindo desta premissa, a pergunta que cabe colocar é: seria o estado máximo – ou mínimo – de uma crise estrutural as relações pessoais? Até que ponto os modelos de relações se esgotam dando início a uma saturação coletiva? Ou no contrário, seria necessária uma transmutação de todos os valores (Nietzsche) para que então, haja uma mudança?

O capitalismo tardio, a Indústria Cultural, a bestialidade do mass media, não só destruíram as relações políticas, impondo assim, um estado de diferenças gritantes, exclusões, e quando não, a miséria. Seu maior triunfo foi sobre a beleza. O capitalismo rompeu com o desejo, já que ele próprio é a máquina que alimenta e destrói esse impulso humano. Foi capaz ainda, de exterminar qualquer necessidade de afeição, aproximação e relação. Nesta lógica, aparentemente, as pessoas se bastam. Mas não as pessoas, a cultura da satisfação imediata basta. Para curar a falta de solidariedade (amor) que perdemos, a violência é espetacularizada, imaculando assim, a impressão de que o homem ainda não rompeu com o jogo de “irmandade”. O aparato tecnológico da mídia é o medo e não o espanto, este último, por excelência do pensamento crítico e filosófico. Não é à toa, que durante séculos, religiões usaram (e usam) a violência estetizada como forma de redenção. Talvez Marx estivesse certo, mas acrescento às suas palavras: a estética da violência é o ópio do povo. A pena e a dó – estes sentimentos tão arcaicos e cristãos – se travestem de união. Se antes, era só o Estado, o aparelho ideológico, que permitia este sentir de irmandade, por meio de signos como nação, hoje a mídia e a cultura da mass media cumprem este papel. A crise é, sobretudo, a das relações humanas. Apoiada na lógica mercantilista, as relações transformam-se em jogo duplo de poder. Talvez aí, caiba invocar a teoria foucaultiana de que toda relação é necessariamente uma relação de poder.

Afastando-se da ética foucaultiana, e agora, aproximando-se da ética de Espinoza, o homem, a sua existência justifica-se pela necessidade e superação de desejos. Para o filosofo do século XVII existem duas formas distintas de desejar: o apetite, aquele que corresponde ao corpo físico, e o desejo da alma, ligado às paixões, aos sentimentos e às subjetividades. Estabelecer em uma época como a nossa, uma relação, seja ela entre um grupo, um coletivo ou entre duas pessoas torna-se uma tarefa de desconstrução da própria lógica que devemos combater.

Ao perdermos a noção de “amor” – palavra complicada e ingrata, já que a Idade Clássica tratou de construí-la historicamente – deixamos de combater a mecânica narcísica de satisfação imediata e de sociedade super excitada. Ao tomarmos como exemplo, o funcionamento das engrenagens do capitalismo, notamos que, apoiado na ciência do sonho (ou “as modas”), qualquer desejo se satisfaz imediatamente. Ao satisfazermos tais desejos, logo outros surgem. Descartamos então a possibilidade anterior. Construímos um mundo platônico, pautado ainda, pelos modelos de relações impostas. Preparamos a nossa carruagem para o baile de fantasias, e corremos em direção ao anúncio do idealizado. Ao soar meia noite, príncipes e princesas em um gesto estúpido preferem não encarar novas possibilidades. Como em uma vitrine de boutique, os manequins tornam-se descartáveis. Narciso volta para casa, e tranca-se em seu lago. Apaixonado novamente por sua “imagem” (a sociedade da repetição destrói a beleza, já que esta é incompatível com a mecanização), reconstrói um ideal platônico. Desta repetição nasce a angústia, o isolamento e a solidão. Não aquela solidão como ética, que alguns filósofos escolheram como caminho, mas a solidão de perceber que amor é memória, tempo presente, sem solução. Jean Paul Sartre estava com a razão quando disse: que na matemática do amor, um mais um… é igual a um: às avessas. Ou quem sabe ainda, o caminho que devemos assumir seja a de nossa estupidez? Ao deixarmos de fingir gestos de união e irmandade, e vestirmos este corpo de espinhos, não romperemos com a ordem estabelecida? Deste gesto insano, para a sociedade de espelho em que vivemos: a vergonha de não cumprirmos o sonho errático de Adão e Eva. Ao assumir nossas estupidezes triunfaremos sobre a própria estupidez do sistema, já que seu triunfo é a vista ilusória.


Imagens-manifestos do fotógrafo paulistano Gal Oppido: a reconstrução do homem, o questionamento de sacralizações e um corpo como texto.

Outro principio destruidor da beleza é a própria sacralização da arte. Qualquer tentativa de sacralizar o que é eloquência do encontro entre o sagrado e o profano é potência de destruição. Neste aspecto, concordo com os “pessimistas” ao afirmarem de que a arte morreu. Uma sociedade super excitada, condicionada por imagens e desejos frustrados, só pode ser, ao mesmo tempo, vitima e assassina da arte. Para o grego trágico, as expressões artísticas eram suportes de uma estética da existência. Não havia esta separação – que logo o mercado decidiu apropriar-se, caso contrário não haveria uma Indústria para tal – para deixar este aspecto da vida humana em um altar. Retiremos os deuses cansados que dormem no altar da arte! Não sejamos ingratos: a tragédia, o drama, o riso (o verdadeiro riso trágico), a poesia, que não fiquem imaculadas nos templos, e que só nos satisfaçam ao acaso, quando desejamos desligar-se do mundo (daquela realidade que nós criamos, platônica, idealizada), para entrarmos no que deveria ser a realidade. A derrocada do homem moderno começa aí: quando este, eufórico e super excitado pelo Narcisismo decide afastar a beleza do outro, a beleza coletiva, a beleza dionisíaca. Para ele, individualista, só a sua beleza é valida. Permitam-me ainda, apontar para os fracos desta sociedade – que não suportam a arte na vida, por que a arte esta sepultada em seus discos, livros, quadros e gestos nas estantes – uma última palavra: deixem Narciso se afogar com sua imagem clownesca, e gritar de espanto: Estamos morrendo de tédio! Transformaremos então… o homem em homem.

Ponto de Vista: www.galoppido.com.br

BRUNNO ALMEIDA MAIA
brunnoalmeida@brrun.com

Fotos: Divulgação / Gal Oppido