Nascer: esse gesto bonito do meio, de dizer sim.
Afirmação límpida, caótica, murmurando dolorosa.
Flores de dizer sim.
Se a vida não existe, e apenas o nascer santifica-se no ato,
devo perguntar,
o bélico, a guerra, a fome, a miséria, a lógica e a racionalidade,
se não são apenas afirmações para dizer sim?!
É preciso nascer, para que a vida aconteça,
no entanto, é preciso morrer para que ela continue.
A morte fantasia a vida, que insiste em dizer não.
De tempos em tempos seu soluçar, ora tímido, ora agitado, suspende-se ou paira em nossos corpos. A fantasia é despida como em uma cena teatral, que à mercê do encenador e do espectador realiza-se sob o signo da tragédia, da farsa ou da comédia. É para alguns, a negação do princípio. Para outros, o princípio desta negação. Seu fascínio potente faz a filosofia, a ciência e a religião se debruçarem sobre o enigma. O decifra-me ou devoro-te, o oráculo de não apostas. Por vezes ridicularizada em praça pública, como se o seu poder tivesse sido controlado. Às vezes, raramente, em sociedades específicas, sua bandeira é hasteada com lágrimas de alegria. A morte agita seu estandarte negro, propondo em culturas e civilizações aparentemente díspares a reflexão sobre o ato da existência.
Chegamos ao século do Manifesto da Vida, ou no duplo teatro de paradoxos: assistimos em nossa sociedade, desde o término da Segunda Grande Guerra não só o fim das utopias, mas também a estatização da vida, como se após o nascimento, sua longevidade pudesse ser controlada. Em todos os lados, parece existir um acordo discursivo de que finalmente não morreremos jovens. A ciência, a tecnologia, o biopoder colocam como pauta do dia a ideia de uma longa existência. Dispositivos de controle e cuidado com o corpo, com a beleza e com a saúde proliferam, ideologizando o que no passado foi causa perdida. Finalmente, a Era da Ideologia da Existência. Por outro lado, ao dominarmos os corpos, perdemos, afinal, a capacidade de distinguir o não animal, deixando de lado o pensamento? E quando o pensamento humano justifica a existência? Por quais motivos, o século do totalitarismo, que encenou ao mundo o teatro da crueldade, “decidiu romper” esse legado dedicando-se ao sepultamento do nascimento e da própria morte?
Propositalmente, buscarei minhas evidências e sustentações em uma espécie de arqueologia da morte, em outras culturas ditas não ocidentais. Em todos os mitos, desde o nosso familiar judaico-cristão, o grego, e os “desconhecidos” hindus e africanos, a vida é ceifada quase sempre com a moral do incesto (sexualidade). Sua personagem central – apontando que o patriarcalismo, o machismo e o sexismo, não são exclusividades de nossa “cultura”- é uma mulher. Tabu que serve como sustento, altar, interdição e policiamento para que a morte não provoque seu derradeiro espetáculo. Em uma versão maori, Tane deus das florestas e das árvores, criou a primeira mulher com areia da ilha Hawaiki. Desta criatura nasceu uma filha, Hine Titama, ou ainda, a Donzela da Aurora. Sem saber que Tane era seu pai, a Donzela casou-se com o deus. Ao descobrir o incesto consumado, envergonhada por tamanha desonra, fugiu para o mundo subterrâneo – ou o habitat de Hades na mitologia grega. Nova moral: Tane vai à procura da Donzela, que alega que o seu pai-deus havia cortado a corda do mundo e, a partir daquele momento, ela ficaria no mundo subterrâneo, cumprindo sua dupla função: aterrorizar e convocar os filhos humanos de Tane para a escuridão.
Fim da Idade Média. Em outra narrativa, desta vez sob a égide da moral judaico-cristão-helênica, a morte aparece, como exemplifica o escritor e filósofo Umberto Eco em seu “História da Feiúra”, Editora Record, como uma personagem familiar, cotidiana, sem as máscaras e pudores, “uma marionete no teatro da vida”. São sabidas as precárias condições de vida e de higiene do período. Este dado factual, pelo menos por enquanto e para esta análise não interessa. Atentaremos então, ao diálogo da história, impondo simbologia e signos. Em cada igreja afrescos como “O encontro dos três vivos com os três mortos” (séc. XIV), na Abadia de Santa Maria de Vezzolano, o “Confronto dos três vivos e dos três mortos” (séc. XV) na Sacristia de San Luca, em Cremona, sentenciavam como um juízo final, o triunfo da morte e da dança macabra. Os fiéis eram ainda lembrados, periodicamente, em ações teatrais e carros alegóricos e carnavalescos que se agitavam nas ruas, conclamando uma “arte do fim”.
É interessante e crucial, para entender o projeto político burguês, o olhar para as narrativas estéticas de embate entre a Igreja Católica e a Reforma Protestante. A primeira reivindicou para si, toda uma estética do terror, “imagens sacras cumprem o papel de memória da morte e da penitência”. A última, por motivos históricos e políticos, torna-se ideologia da burguesia nascente, assim como a ciência moderna do século XVIII/ XIX. Esta dispensa o cenário das trevas. Duas morais que se configuram pela aberração e a dispensa do direito ao corpo. A pastoral da carne como terror, e a segunda como “vida”. Não à toa, assistimos uma sociedade que por meio da prolongação do que supomos como vida, com técnicas científicas e artificiais, já não separa o colapso entre nascer e morrer, ceifando qualquer possibilidade do meio ou da existência. A Igreja e sua religião, retirando a vida e colocando-a em um porvir, tomou para si toda uma estética da morte. O contrário aconteceria também, após a chegada de outros projetos políticos, como a ciência. Desta vez, retirando a morte da vida, descaracterizando-a de anti extraordinária, e julgando a “existência” como consequência imediata do nascimento.
Se a ciência e a filosofia profanaram a “essência” da Igreja, retirando de si toda a eloquência de uma ascética, em busca de uma recompensa pós-mundo, em quais momentos a existência se justifica? Problemática intensificada com a chegada da “morte de deus”, proclamada pelo alemão Friedrich Nietzsche, em “O Anticristo”. Para ele, contemporâneo da ascensão da burguesia e das revoluções que refletem em nossas crises atuais, a humanidade passaria a viver sem o conforto das religiões. De um deus monoteísta, Nietzsche retira o seu poder, dissolvendo-o em pedaços. Entrega à humanidade a causa reivindicada desde os tempos dos mitos: somos deuses em constante evolução. Como apontamos o científico passa a ocupar o discurso da morte. Uma nova Ideologia é instalada. Trata-se de um novo projeto ideológico, que lacunar, discursa no sentido da totalidade e da não explicação do que é particular.
Campo de Concentração, Cemitério e Hannah Arendt.
Na Era dos Extremos (século XX) encontraremos dois dados interessantes que se cruzam: até a queda dos regimes totalitários, especificamente o nazista e o stalinista, os campos de concentração, de extermínio e de trabalho forçado: a morte sendo vista, sendo “apreciada” e participando do regime que “estetizou a política e politizou a arte” (Peter Gay). Com a ação direta de instituições “pró-vida” e de defesa da “humanidade”, como a ONU, o reverso: década de 50, 60, juventude transviada, tecnologia, libertação do corpo, o esforço para esquecer, ocultar e relegar a morte aos cemitérios. “Nomeá-la apenas através de perífrases ou exorcizá-la reduzindo-a a um simples elemento, graças ao qual é possível esquecer a própria morte para divertir-se com a dos outros”, Umberto Eco. A negação dos ritos que permeiam a morte: seremos eternamente jovens; os outros morrerão no espetáculo. Período em que Foucault escreveria seu emblemático “História da Sexualidade II – O Uso dos Prazeres”, onde identifica essa repulsa pela morte: é culpa da sexualidade (incesto no mito). “O ato sexual não inquieta porque releva do mal, mas sim porque perturba e ameaça a relação do indivíduo consigo mesmo e a sua constituição como sujeito moral: ele traz com ele, se não for medido e distribuído como convém, o desencadear das forças involuntárias, o enfraquecimento da energia e a morte sem descendência honrada”. A cena coletiva final da dança da morte do século XX são os anos 80/90, com a chegada da AIDS.
Herdeiros do totalitarismo e do nazismo que somos – como pontuou Jean Ziegler ao tratar de uma nova modalidade desta “política”: a tina (palavra formada com as iniciais da expressão inglesa “there is no alternative” – não há alternativa) utilizada por Margaret Thatcher para proclamar o caráter inelutável do capitalismo neoliberal, ou ainda, Noam Chomsky que sustenta esta ideia, por meio da supremacia da propaganda reinante nas democracias – devemos nos perguntar onde reside neste discurso lacunar, a omissão do projeto político contemporâneo de vida/morte?
Uma existência que não pode “ser” e “se” questionar, colocar-se na ordem do pensamento e da ação enquanto sujeito da reflexão não merece ser narrativa – e é isto, que individualiza a existência humana. Ou nas palavras da filósofa judia Hannah Arendt, em oposição ao reducionismo das ideologias humanistas, de que a vida possui “algum valor” intrínseco, mas que ela só se realiza se não cessa de interrogar tanto o sentido quanto a ação: “(O) caráter revelador da ação como a faculdade de produzir narrativas e de se tornar histórica (…) formam os dois, a fonte de onde jorra o sentido, a inteligibilidade, que penetra e ilumina a existência humana”. Em outras palavras, o nascimento e a vida só se justificam se puderem ser contadas, narrada e ouvida. O que faz desta narrativa, uma ação política, como na antiga pólis grega, não é o ator, personagem ou agente histórico, mas os ouvintes, os espectadores, que concluem a história, com o pensamento após o ato, com intermédio da lembrança. São os espectadores ainda, que fazem desta pólis uma organização criadora de memória e/ ou história (s), logo política.
Cena Melancholia e Pólis Sepultada.
Zeitgeist de seu tempo, a filósofa observa a atual crise da cultura dita moderna como um perigo de esquecimento (exatamente o que o totalitarismo – cultura de massa? – faz: anular o presente/ memória). “A tragédia (…) começou (…) quando se revelou que não havia consciência alguma para herdar e questionar, meditar e lembrar”. Ora, e o advento da instantaneidade da tecnologia e do mundo virtual? A pergunta correta: este espaço cumpre a função social de pólis, mantenedora da memória, ou substitui o presente pelo esquecimento?
É nesta ausência de memória, que reside em minha opinião, a “beleza e a poética” da personagem Justine (Kirsten Dunst) do filme-manifesto “Melancholia”. Durante toda a ação-comum – a parte I e a parte II – não sabemos de seu passado, seu anterior, seu histórico. Temos alguns apontamentos de ordem presente, como o casamento e o seu trabalho fracassado. Mas isto não basta para explicar por que só ela, inicialmente, é afetada pelo planeta título do longa-metragem. Lars Von Trier faz o caminho contrário de nossa sociedade. No prólogo (nascimento) espetaculariza, bombardeia com imagens poderosas, e na parte final ridiculariza, mostrando que esperávamos justamente o contrário. Talvez aí, resida a declaração infeliz e de mau gosto do cineasta sobre o regime nazista. Realmente, as nossas íris estão anestesiadas por novos totalitarismos.
Será que o “fim” do político, tornando a nossa atualidade de certa forma apolítica, começa lá na religião, ao ideologizar a vida e a morte, separando-a e colocando-a no porvir, e depois na ciência, que negando a morte, reafirma não a vida, mas apenas seu caráter simbólico? Até que ponto uma religião cientifica moderna, criada na ascensão da burguesia e na Era das Ideologias ocupou-se em totalizar a vida, para que não perecesse mais o corpo humano, mas a pólis? Este local onde se justifica o projeto do pensamento político (existência) assistisse então, no século nascente, o verdadeiro sepultamento?
Ponto de Vista: “O Gênio Feminino – A vida, a loucura, as palavras – Tomo I: Hannah Arendt”. Autora: Julia Kristeva. Editora: Rocco. www.rocco.com.br
BRUNNO ALMEIDA MAIA
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