Villa Necchi

Eu tentava escorrer do meu casaco as últimas gotas de chuva quando percebi que não era mais um museu como tantos na Itália. Aguardávamos que a porta de entrada se abrisse – uma enorme porta de ferro -, onde um padrão retangular de um vidro grosso mostrava o hall de entrada, coberto de mármore cinza e preto.  Uma senhora abre a porta, nos ignora apesar de sermos nós o motivo da abertura da porta e meu olhar foi imediatamente atraído pelos parafusos de metal que prendiam as placas de mármore na parede do hall. Grandes, pesados, de metal dourado, os parafusos para mim foram ao mesmo tempo a primeira impressão e a conclusão do que estava por vir.

Visitar a Villa Necchi em Milão é como navegar por um museu que não se encaixa em nenhuma parte da história. O estilo da casa revela um luxo particular, o gosto que de tão clássico e pragmático as vezes emerge como vanguarda e excentricidade para os olhares ignorantes e mal-educados, como o meu. Construída na década de 30 pelo arquiteto Piero Portaluppi a residência de uma família da alta aristocracia industrial Milenesa (os Necchi Campiglio) permanece intacta e revela, através de cada ângulo austero de suas paredes, um estilo de vida único, um cotidiano onde o prazer se encontrava em perfeita harmonia e equilíbrio entre interiores escuros e áreas de lazer e esporte. Pensamento profundo sobre atividade e estética em cada milímetro. O estilo Racionalista ali toma sua forma mais pura, como se a Villa fosse um exemplo didático do termo. Geometria, mecânica, ciência e física são a base de pensamento e aparato filosófico que se revelam em cada cômodo, como tentativa de colocar o homem no centro do universo. Na Villa Necchi, o homem é Deus, a artificialidade da construção feita para a vida esnoba a natureza e a escraviza de maneira deliciosa. Nos fundos da sala principal, no primeiro andar, onde uma das paredes é inteiramente feita de vidro (precisava me lembrar constantemente durante a visita que a construção data da década de 30), um jardim interno proporciona iluminação e contato com o verde: plantas exóticas ou não, são dispostas em vários planos, como se quisessem ser a cortina desta grande janela, como se fossem objetos… E são.

Entre obras de arte, na sua maioria do início do século XX, precursoras, remanescentes ou consequências do futurismo italiano e clássicos perdidos e esparsos, os ambientes íntimos são quase neutros, como se quisessem ser um refúgio incógnito. Pensei sobre a vida social dos fantasmas da casa, pensei em dias e noites repletas de tarefas, profissionais e sociais e compreendi a caverna dos Necchi.

Incontáveis vasos e porcelanas, a cozinha preparada para receber convidados desavisados ou invasivos, lustres e lâmpadas escuras, uma luz que rebatida nas muitas superfícies de madeira envolve o ambiente em um aconchego quente, sempre contrastante e equilibrado com os ângulos retos. Uma fórmula matemática em espiral que forma pisos planos e escadas suntuosas, de um luxo complexo, sejam estas feitas para acesso às áreas de serviço ou ao centro da casa.

No ano passado tive uma surpresa ao assistir “Io Sono L’amore”, filme de Luca Guadagnino onde Tilda Swinton vive uma mulher aprisionada por uma vida repleta de regras, e sofre, não obstante sua posição social seja extremamente privilegiada.

Como cenário para esse trágico romance, Guadagnino escolheu a Villa Necchi.

“Obvio!” Pensei.

Onde mais encontrar enormes placas de mármore, frias, belas, perfuradas e  eternamente aprisionadas por quatro parafusos de metal dourado, em uma composição que faz dialogar profundos questionamentos sobre a vida íntima e o mundo externo, sobre o equilíbrio impossível da fragilidade humana e o peso industrial? Tudo em um hall de entrada.

GREGORIO REIS
gregorioreis@brrun.com

Fotos: Divulgação