“Os olhos visam o infinito. O ouvido distingue sons quase inapreensíveis no meio do mais vasto tumulto. É então que começam as alucinações. Os objetos exteriores tomam lentamente, sucessivamente, aparências singulares; deformam-se e transformam-se. Depois, chegam os equívocos, os enganos e as transposições de idéias. Os sons revestem-se de cores, e as cores contêm uma música.”
Charles Baudelaire ‘Les Paradis Artificiels’, 1858
A CÂMERA NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Em 1860 o poeta francês Charles Baudelaire, autor do célebre ‘As Flores do Mal’, publica ‘Paraísos Artificiais’, espécie de artigo em que ele discorre sobre suas diversas experiências com drogas usadas em seu círculo de amizades parisienses, com destaque aos efeitos provocados pelo ópio e o haxixe. A ele é dada a importância de ter escrito o mais profundo ensaio a respeito da metafísica da droga e suas motivações particulares ou mais ainda, ao caráter quase religioso motivador de tais experiências. Durante o texto é possível observar a quantidade numerosa de termos relacionados a aspectos religiosos, ou pelo menos beatíficos, como “graça”, “gratificação”, “elevação”, “forças espirituais” e “evangélico”. Baudelaire nos indica que por trás da singularidade e atração da busca de tais experiências sinestésicas o que reside verdadeiramente é uma motivação humana a ascendência. O aspecto transcendental da droga encontra aí o seu correspondente espiritual que vai de encontro ao Éden espectral de cada ser humano (não por acaso muitas seitas religiosas se utilizam de chás ou outras substancias alucinógenas enquanto gatilho para uma série de apreensões e atitudes glorificantes).
É exatamente por conta dessa aproximação ao Nirvana subjetivo que nos interessa inserir o pensamento sobre ‘Enter the Void’, de Gaspar Noé. Não, não estamos no mesmo terreno de ‘Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída’ (Christiane F. – Wir Kinder vom Bahnhof Zoo) ou mesmo de ‘Trainspotting’, de Danny Boyle. Ao contrário estaremos muito mais próximos do Kubrick de ‘2001 – Uma Odisséia no Espaço’ (2001: A Space Odyssey) como veremos a seguir. Mesmo que Noé possa ser aproximado muito mais aos dois filmes citados primeiramente, por sua tendência ao sacrifício do corpo enquanto objeto de violência e representação, o diretor de ‘Irreversível’ (Irréversible) demonstra aqui a necessidade de traçar novamente uma jornada que tende a elevação. Se no filme de 2002 Monica Bellucci e Vincent Cassel peregrinam o trajeto que vai do inferno ao céu (chegando a este através do pôster do sci fi metafísico de Stanley Kubrick e de uma gravidez, elemento presente também aqui), em ‘Enter the Void’ novamente todo martírio de seus personagens encontrará suavização no mais alto grau espiritual. É como se Noé apesar de toda habitual mão pesada na construção de seus universos e histórias precisasse de um contraponto para justificar ou abençoar cada atrocidade cometida a seus fantoches em maior ou menor medida desorientados.
‘Enter the Void’ resgata e intensifica tanto os registros de Baudelaire em ‘Paraísos Artificiais’ sobre as drogas quanto o seu fascínio pelo percurso e desgaste em direção à salvação de ‘Irreversível’, relacionando ambos ao ponto da transcendência física e espiritual. Enquanto no outro filme a catarse era reversa enquanto potencialidade para uma esperança ou um falso happy end, aqui ao menos há verdadeiramente uma nítida vontade de celebrar um happiness após todas as provações. Até porque no cinema de Noé as vivências de prazer e sofrimento sempre estão muito próximas numa espécie de masturbação prolongada que tende tanto a uma asfixia ou epilepsia dos sentidos. Aos seus personagens viver e morrer só pode existir dentro da esfera do prazer sendo o filme a visibilidade dessa passagem.
Em ‘Irreversível’ era preciso destruir todas as matérias possíveis para que depois fossem reconstruídas com o poder da montagem, esta poderosa entidade salvadora, que antes neste mesmo filme fora negada deliberadamente no polêmico plano seqüência do estupro. O corpo massacrado e posteriormente revitalizado pelo cinema agora dá lugar ao espírito ou corpo plasmático, fantasma multicolorido ou mais do que nunca fantoche assoprado pela narrativa. Noé para contar a trágica história dos irmãos Oscar (Nathaniel Brown) e Linda (Paz de la Huerta) cria um teatro privilegiado da encenação languida, ou melhor ainda, literalmente, da maquete narrativa. Mais que nunca seus movimentos de câmera avantajados e a onipresença de sua grua invisível encontram o local perfeito para todas essas manipulações físicas e agora extra carnais de seu títere em questão.
Noé troca (ou ignora) a figura consciente de um Grilo Falante de ‘Pinóquio’ (Pinocchio) ao preferir (e se interessar) muito mais a uma fusão do que seria a Lagarta e o Gato de ‘Alice no País das Maravilhas’ (Alice in Wonderland). A encenação foge a qualquer racionalismo das ações e explicações, recaindo sempre numa eterna suspensão aconchegante e fluida onde o que importa é a capacidade febril de invadir espaços e tempos. Novamente a montagem que tudo pode, associada a uma câmera em que tudo há, para poder avançar e retroceder cronológica e espacialmente.
DIMETILTRIPTAMINA
Estamos em uma Tóquio luminosamente hipertrofiada como se não houvesse mais estado natural de pertencimento e realidade, sendo tudo já parte de uma modificação sensível aos sentidos como indica a virulência dos créditos iniciais e a opção natural e acertada à utilização de uma câmera subjetiva que intensifica o registro pessoal de todas as cenas e eventos. Começamos o filme sendo e dentro de Oscar, a partir de sua visão e sua trajetória pré-determinada de vida e narrativa a ser cumprida.
Ele e sua irmã vivem em um pequeno apartamento na capital do Japão em meio a uma rotina majoritariamente noturna, ele sendo usuário de diversos tipos de droga e ela trabalhando como stripper numa casa noturna local. Numa, de costume, iluminada noite após utilizar uma dessas drogas e entrar num processo alucinógeno próximo da animação de um Windows Media Player bem realizado Oscar recebe a ligação de Victor (Olly Alexander) que interrompe sua viagem particular pedindo para que ele leve até ao clube noturno ‘Void’ uma razoável e perigosa quantidade de droga. Então Oscar e um outro amigo, Alex (Cyril Roy) vão até o tal lugar para entregar o material enquanto este espera do lado de fora o arriscado trabalho ser feito.
É também Alex que anteriormente como a narrativa depois mostrará entregara a Oscar ‘O Livro Tibetano dos Mortos’ que resumidamente diria que ao morrer temos o desencontro de nosso espírito com o corpo precedido pela visualização de toda a vida pregressa “como se fosse refletido num espelho mágico”. Após isso nesse processo post mortem a pessoa passaria a um estado no qual poderia voar ao todo redor podendo ver e ouvir tudo o que acontece a sua volta, porém naturalmente impossibilitado de se comunicar. Passado isso haverá uma série de visões luminosas dos mais diversos tipos, cores e intensidades que seriam nada mais do que portas para níveis superiores de existência. Por trás disso há o desejo de permanência neste mundo vivido devido a enorme vontade por aqui continuar levando a uma espécie de bad trip que só poderá ser solucionada através da reencarnação. Em linhas gerais logo nos primeiros vinte minutos de filme será o próprio personagem a explicar e antever toda a narrativa que virá insinuando sem spoiler algum a esperada morte do protagonista que acontecerá poucos minutos após o diálogo sobre o livro.
A pouca sutileza de Noé na verdade soa mais como a tentativa de unidade para o filme que acaba por conta disso sendo todo guiado pela consciência de sua forma e seu conteúdo. Mais uma vez há o traço estroboscópico alternado pelo ralenti dos planos que na maioria das vezes se tornam seqüências de tão alongados. A grande montagem pisca pisca mais uma vez revela o gosto particular do diretor à fascinação cinematográfica da flicagem, encanto e conquista do choque ao olhar do espectador, este ser irrecusável a qualquer fascinação que o capte de maneira vibrante e luminosa.
Ao optar por um universo repleto de neons e variações de luz, intensidades e cores Noé pôde realmente brincar de ser Deus, manipulando os desvios e diagonais lentamente voadoras de Oscar, mas também o estado sonífero de seu espectador, ambos vagando a mercê de sua literal direção. Para isso a metáfora da maquete em luz negra de todas cores acaba sendo mais uma vez a verbalização visual daquilo que está sendo dito ou no caso feito pela entidade diretor. Noé, cineasta da estrutura, não tem vergonha de escancarar seu arcabouço conceitual. Está tudo bem visível e chamativo, a ponto de piscar como o fetichismo criativo dos letreiros.
A perambulação de Oscar após sua morte avança e retrocede no tempo, revive momentos de grande impacto e horror como o acidente e também morte dos pais como outros de pura lembrança afável ao lado da irmã na infância bem como já adultos. Numa lenta contemplação incomunicável através dos tempos e espaços, vagamos desalmados pelo labirinto luminoso, grande balada de pupilas dilatadas, como um Orfeu disc jockey a procura do paraíso perdido. Após o clímax literalmente orgástico com direito a uma literal subjetiva do pênis ejaculando dentro do canal vaginal internalizamos absolutamente todo o percurso pretendido.
Como uma versão intimista e orgânica daquilo que a odisséia espacial de Kubrick era fora da galáxia só trocamos um universo por outro. Na Cosmogonia de Gaspar Noé o que importa realmente é a transcendência espetacular desse vazio a ser bela e violentamente adentrado, preenchido e elevado através de suas imagens.
MATHEUS MARCO
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